O direito de ler enquanto se janta sozinho
...seguido pela prerrogativa sagrada de esticar o almoço.
Gosto de dizer que não dei conta da faculdade de História porque meu lance era mesmo a ficção. E que justamente por isso mudei para o Direito, área do conhecimento muito mais porosa a devaneios e criações imaginativas. Na toada ficcional, desde a primeira aula, lido com a busca dos direitos ainda não alcançados e que tornariam nossa existência por esse mundo um pouco menos cretina. É sobre dois deles que decidi escrever.
Em 2010, a Companhia das Letras publicou uma coletânea de contos escritos a partir de canções do Chico Buarque. O livro foi organizado pelo Ronaldo Bressane, se não diretamente encomendado, ao menos com a chancela da RT Features, produtora cinematográfica que desde aquela época já era dona dos direitos de adaptação de boa parte da produção literária contemporânea. Há preciosidades absolutas, como a viagem de pedra de André Sant’Anna baseada em Brejo da Cruz, e um dos títulos de que mais gosto na literatura: O direito de ler enquanto se janta sozinho, para o conto do argentino Alan Pauls sobre um pai que enrola em um restaurante japonês enquanto a filha assiste a uma peça de teatro, escrito a partir de Ela faz cinema.
Poucas coisas eu levo mais a sério que a nomeação e, como a literatura ocupa parte central na minha vida, que a intitulação. Foi ao descobrir títulos dos meus livros que pude organizá-los melhor. Muitas vezes é a partir de um título que começo um conto ou entendo sua atmosfera, sua estrutura. Em outras tantas vezes, um título transborda pro lado de cá do espelho e o direito de ler enquanto se janta sozinho é incorporado à minha declaração universal como se fosse inevitável.
De um lado, gosto muito da solitude. Cada vez mais entendo meus espaços e, ainda que divida a vida com pessoas maravilhosas, chega uma hora que preciso me recolher à minha companhia. Os jovens encontraram a ótima metáfora da bateria social para o fenômeno que me acomete. Não é que não gosto de estar com outras pessoas, é o meu prazo de validade vence mais rápido que a média e, quando vence, preciso estar sozinho. De outro lado, meu gosto por comer é antigo e, coincidentemente, também o exerço com maior vigor desde 2010, o ano do meu primeiro VR, cujo valor chegava a ser o triplo do da bolsa do estágio, o que possibilitou que eu explorasse a cidade pelos seus restaurantes. Claro, em 2010 eu tinha que fazer muito mais contas, perguntava ao garçom se o restaurante aceitava Sodexo antes de sentar e alternava meus gastos ordinários entre o baratíssimo do Subway da alameda Santos, a promoção do dia do Puppy e o “Setão”, um PF de sete reais vizinho do finado Gemini na galeria Winston Churchill. Comia rápido e corria para a Fnac para matar o restante do tempo do almoço lendo, inclusive as histórias escritas para as canções do Chico. As coisas melhoraram um pouquinho e hoje frequento lugares em que posso comer e ler com calma, assim como gostaria o protagonista do conto de Pauls.

Bato ponto igualmente em lugares em que o propósito é sentar, comer e vazar. As longas filas do superestimado Aska teriam o triplo do tamanho se os funcionários fossem gentis em vez de constranger o público e se apressar para ir embora assim que terminassem de sorver o ralo caldo de seus ramens. Pouca coisa me irrita mais do que a turma do almoço que enrola pra voltar pro escritório em restaurantes fubangos de polos empresariais (uma delas é quando eles resolvem caminhar de volta lado a lado, fechando a calçada, como se algum dos “parças do almoço” tivesse menos valor se formasse uma segunda linha atrás da primeira). Falta mais do que civilidade, falta um mínimo de humanidade para ter noção de que o outro talvez tenha um horário de almoço muito mais curto que o seu e precise da mesa que você ocupa falando alto e reclamando da Sônia do RH.
Tudo, afinal, é uma questão de entender o modo de usar dos locais, insisto desde a edição passada da newsletter. Não tem como você esperar o sentar, comer e vazar numa trattoria que te recebe com antepastos ou num izakaya em que os otoshis são imperdíveis. Uma ida ao Sujinho sem a saladinha de repolho e a muçarela de búfala do couvert, ao Churrasqueto sem o molho verde com pão francês semitostado na grelha ou ao Boi na Brasa sem o cebolete são idas sem propósito. Isso também é modo de usar. Mas os três exemplos não são exatamente lugares para estender o almoço: o serviço é completo, mas a operação é rápida e há rotatividade de clientes. Na dúvida, olhe em volta: há fila? você está atrasando o corre dos funcionários? Não fique, termine sua página, peça a conta e volte à leitura em casa (ou no Sesc 24 de Maio se você estiver no Churrasqueto, ou na praça Rotary, um dos lugares mais gostosos para ler em SP, se estiver no Boi na Brasa).

Acontece que lugares em que não há problema enrolar estender o almoço são cada vez mais raros, pelo menos em São Paulo. Aqui a perspectiva geográfica importa. Diferentemente do Rio, onde os restaurantes mais tradicionais seguem em funcionamento ininterrupto do almoço ao jantar, em São Paulo há dois turnos bem marcados, o que é um justo empecilho para aqueles que gostam de ir além do esquema entrada-prato principal-sobremesa e seguir a tarde com café, digestivo e outras biritas que adiam o inevitável retorno ao cotidiano. Aí é que entra um dos souvenires que guardo com mais cuidado, herança de um glutão veterano.
Cansado de frequentar lugares em que não podia esticar o almoço, o advogado José Carlos Madia de Souza, conhecido entre os egressos da Faculdade de Direito da USP como o eterno presidente da associação dos antigos alunos, elaborou uma lista de quase trinta restaurantes em São Paulo, Rio e Brasília que não o expulsavam quando ele pedia o terceiro uísque depois do café. Ele fez mais: mandou imprimir frente e verso, plastificar e entregar a quem fosse com a cara. Bateu uma tristeza danada ver que alguns ótimos endereços1 fecharam definitivamente as portas, como o Itamaraty, onde eu comia uma empada e tomava alguns chopes para aguentar as aulas de direito tributário, e a Montecchiaro, cantina que meus pais frequentavam ainda solteiros.
Mas também me deu ganas de honrar a memória do Dr. Madia, morto em 2022, e esticar o máximo de almoços possíveis. O meu lugar favorito para isso é o Circolo Italiano, no primeiro andar do Edifício Itália. Poderia passar as tardes da minha vida comendo acepipes, tomando garrafas de vinho médio e vendo o movimento da avenida Ipiranga entre um capítulo e outro de um livro incrível. Também este direito, o de esticar o almoço, faz parte da minha Constituição.
Quando comecei a estruturar este texto a partir da imagem da ficha plastificada com os restaurantes favoritos do Madia, o Star City era um dos estabelecimentos cujo fechamento eu lamentava, mas previa. Praticamente todas as vezes que fui ao restaurante, mesmo antes da pandemia, o salão estava praticamente vazio. Era um dos poucos lugares a servir feijoada todos os dias no esquema coma à vontade. A importância cultural do lugar é tamanha que minha avó, aos 92 anos, morando longe de São Paulo há um quarto de século e autora da minha feijoada favorita, diz até hoje que “feijoada boa é do Star City”. Entre a ideia do texto e o ponto final recebi a notícia de que lugar aparentemente voltará a funcionar em operação tocada pela Janaína Rueda. Nela eu confio. A ver.
Mais frequentemente do que não, tem uma proporcionalidade inversa entre a conveniência de frequentar o restaurante - não precisar de reserva, não te expulsarem ao fim da refeição, certas simpatias no serviço etc. - e a qualidade do que se come e se bebe. Restaurante em que o cliente ocupa a mesa por 4 horas em horário agitado tem que ou cobrar muito caro ou servir comida feita de insumos muito baratos. Tem sua função, mas para quem quer gastronomia costuma ser furada.
Em tempo, fui no Domo esses dias e a hostess disse, enfatizou e repetiu que preciaríamos liberar a mesa impreterivelmente antes da reserva seguinte, e antes mesmo de sentarmos...
taí uma literatura que presta pra alguma coisa! (e a frase dos jovens é, sim, do nelson). amei <3