Numa das crônicas mais representativas de certa boemia artística paulistana que não apenas ignorava que a geração estava dobrando o Cabo da Boa Esperança como sequer imaginava que a própria cidade, após o boom da primeira Era Lula, se transformaria em uma entidade adversa aos nossos bares ruins favoritos – o meu virou uma Miniso –, o Antonio Prata fez uma autocrítica antes de ser moda, cunhou a expressão “meio intelectual, meio de esquerda” e consagrou a frase “a gente abomina a Vejinha”. Lembrei dela ao ler o texto do Peu Araujo sobre odiar amar e amar odiar São Paulo. Em certa altura, ele fala dos restaurantes escondidos que o Guia da Folha divulga e estraga. Não podia me sentir mais representado.
Por isso tive sentimentos ambíguos e conflitantes quando, no contexto da última reforma gráfica, a Folha retomou o guia impresso. Eu sentia falta do Guia, eu comprava o jornal de sexta-feira pelo Guia, eu me beneficiava do Guia, mas ao mesmo tempo me sentia um pouco traído quando o Guia dava o endereço de uma biboca escondida num andar intermediário de uma galeria pouco frequentada no Centro que só eu conhecia e naturalmente me sentia o máximo por conhecer. Veja bem, nem vou me defender se for acusado de esnobismo – a carapuça da crônica do Prata segue servindo. É claro que eu sinto um prazer delicioso, que com o tempo desisti de tentar disfarçar, ao cravar que a feijoada mais saborosa de São Paulo é servida todos os dias em um antigo pensionato japonês no meio da Liberdade. É parte da minha personalidade ser o amigo para quem as pessoas pedem recomendações de bares e restaurantes. Mas tudo bem, não preciso ser a única fonte (vocês que sabem, o risco não é meu...). O grande problema do restaurante sair na Vejinha, no Guia da Folha ou num vídeo do TikTok (que eu, como bom 35+, vou ter acesso três semanas depois quando for repostado como reels no Instagram) não é bem eu ser furado, e sim o que uns amigos convencionaram em chamar imprecisamente de “efeito Chi Fu”.
O Chi Fu (corruptela de sea food), pra quem não sabe, é um restaurante chinês na Liberdade que até meados de 2008 ou 2009 tinha um ambiente aparentemente hostil a ocidentais. Aparentemente porque ninguém te impedia de comer lá, mas era muito comum, por exemplo, que um grupo de 04 brasileiros chegasse para almoçar e fosse empurrado para uma mesa com outros 06 conterrâneos desconhecidos, enquanto casais de chineses ocupavam sozinhos mesas para 12 pessoas. O cardápio por muito tempo não tinha tradução para o português, o ambiente era escuro, aquários sinistros faziam parte da “decoração”, o restaurante só se aceitava dinheiro e, com sorte, você não era maltratado por uma garçonete sem paciência. Era uma maravilha. Isso já filtrava bem quem queria muito comer as deliciosas barbatanas de tubarão ou a tripa de porco com molho oriental de quem desceu do metrô procurando qualquer frango xadrez. Nesse ano, que não lembro se 2008 ou 2009, houve uma reforma e o Chi Fu se tornou mais aprazível, iluminado, cardápio em português, um ou outro garçom que ao menos fingia se esforçar para te entender. Os preços subiram um pouco, mas ainda assim ainda era um rolê para iniciados. O problema surge quando vem a Copa do Mundo de 2014 e o Chi Fu sai em uma lista do suplemento cultural do Guardian – a Vejinha deles – e passa a ser improvável conseguir uma mesa sem fila no horário nobre e ter uma refeição por 1/3 do valor que se pagava antes. O Bar do Biu, em Pinheiros, sofreu efeito semelhante no preço. O Riconcito Peruano – que um amigo chamava carinhosamente de Chi Fu peruano da Cracolândia – virou uma rede de sucesso na mesma velocidade com que o ceviche perdeu a acidez para se conformar com paladar local. O Acrópoles, no Bom Retiro, resistiu graças à cabeça-dura dos donos do local (respect!).

Mas eu terminei o penúltimo parágrafo usando o advérbio imprecisamente. A comparação com o Chi Fu não é exata porque o Chi Fu é um caso de acerto. Ele manteve as receitas antigas e segue, 10 anos depois da Copa, um sucesso de público e renda. Para o restaurante, que já tinha passado por uma grande reforma anos antes e não perdeu a clientela tradicional, encabeçada pela colônia chinesa cada vez mais numerosa, sair no Guia da Folha do Guardian foi só alegria. Para quem queria almoçar feito Pantagruel por uma bagatela e sem estresse, bora procurar outro pico, faz parte. Só que o Chi Fu é exceção. Cansei de conhecer endereços que, após ganharem os 15 minutos de fama, seja na mídia tradicional, seja graças aos influencers que alimentam o algoritmo com vídeos rasos narrados com uma voz em off infantil e enfadonha, recebem uma explosão de público, tentam se adequar à demanda de consumidores que jamais serão fregueses e, quando se dão conta, afastaram a clientela tradicional. Quando os tais 15 minutos, cada vez mais efêmeros, se esvaem, sobram a terra arrasada, uma faixa de passo o ponto e um futuro Oxxo.
É claro que a culpa não é do Guia da Folha, da Vejinha ou do repórter que escreveu a crítica. Aliás, se chegou no jornalista é muito provável que o lugar já era comentado o suficiente e há muito tempo não era mais um segredo meu, do André Barcinski, do Peu Araújo e do Antonio Prata. A culpa é nossa, de escolher um modo de frequentar os lugares sem entendê-los, sem respeitar a história sobre a qual os tijolos foram assentados. Se não me engano, foi o Edu Goldenberg que escreveu uma crônica sobre um bar no Rio de Janeiro em que demorou algumas semanas até que fosse atendido. Toda vez ele se sentava no balcão e os funcionários não davam a menor bola. Ele ficava uns minutos, folheava o jornal, prestava atenção na clientela e ia embora. Até que uma hora perceberam que ele não iria desistir e finalmente serviram uma Antarctica gelada. A partir desse dia, se tornou habitué. O que pode parecer um inferno para a maioria das pessoas, para mim é o paraíso: é preciso imaginar Edu Goldenberg feliz. Há poucas coisas mais prazerosas que ser chamado pelo nome por um dono de biboca que, nas primeiras vezes que você esteve por lá, te olhou como quem diz que você não pertence ao lugar.
Não acho que precisamos chegar a esse ponto em todas as interações do no nosso cotidiano – a vida pode ser um pouco mais leve –, mas compreender que cada estabelecimento tem seu modo de usar deveria ser obrigação do cliente – há poucas coisas mais elitistas e que representam mais o espírito de olhar o prestador de serviço como serviçal que a máxima de que o cliente tem sempre razão. Se você pede uma barca de sushi num restaurante especializado em comida de Okinawa – pratos fortes, muita carne de porco, melão verde, pepino amargo –, você tá usando o lugar de forma errada. Sim, é uma cagação de regra. E sim, o dono do restaurante tem o direito de te atender com menos ímpeto do que acolheria a pessoa que entendeu a proposta do local. Mas, como ele precisa fechar no azul pra pagar com o funcionário a quem o cliente-que-acha-que-tem-sempre-razão se dirigiu com nojinho para pedir “salmão sem wasabi”, ele vende o que os trouxas pedirem.
O risco está em se adequar ao gosto do público flutuante – menos fiel, mas em maior número – e perder o que o tornava singular, colocando em xeque toda a operação no longo prazo. Essa conta só fecha quando voltarmos a frequentar os lugares pelos motivos certos e não por uma foto boa. Por incrível que pareça, o meio intelectual, meio de esquerda da crônica do Prata tinha motivos mais dignos para visitar os estabelecimentos autênticos de um Brasil muito bem diagramado. Eles eram uma caricatura. Nós somos uma farsa.
E você, já perdeu algum bar ruim ou restaurante singular?
eu nem me lembro por que, mas você me deve um jantar no deigo há uns 4 anos