Em abril de 2020 tínhamos coisas mais importantes em que prestar atenção. Volto às capas dos jornais e as manchetes tentavam dar conta da tragédia que era passar por uma pandemia no governo Bolsonaro. Nas primeiras páginas, fotos de covas coletivas, contagem de casos e mortos, figuras cuja existência eu tinha esquecido – como Luiz Henrique Mandetta, o ministro da saúde que antecedeu Teich, o breve, e o infame Pazuello –, e o emprego de “coronavírus” para designar o que entraria para a vulgata como “Covid-19”. No âmbito pessoal as coisas não estavam menos à flor da pele. Fazia quase um mês que eu não botava os pés além do hall do elevador, me adaptava ao home office com um computador só um pouco melhor que o 486 e lidava todos os dias com a burocracia da operadora de cartão, três empresas aéreas, uma companhia ferroviária, um hotel e o Airbnb por conta de uma viagem cancelada um dia antes de a Europa fechar as fronteiras. A única coisa que parecia realinhar os chacras era rever Seinfeld pela nona vez. Aí o PASV fechou e tudo desandou.
Eu, que não tive parentes e amigos próximos atingidos pela doença em sua forma mais grave, senti o fechamento do restaurante como a primeira perda do que ainda era uma breve quarentena. Posso dizer que, como escritor, errei quando não dei a devida importância a esse desaparecimento – e que insisto no erro quando começo este texto dizendo que havia coisas mais importantes em que prestar atenção. Não havia. Deixemos tudo aquilo que repercutiu na vida de todos para os historiadores e, talvez, jornalistas. Aqui o que me interessa é a miudeza. E, com atraso de cinco anos, falo sobre a morte e vida do meu restaurante favorito.
De nome inusitado – um acrônimo formado por Perez, Ares, Salcines e Villaverde, sobrenomes dos fundadores – e localização privilegiada para moradores e transeuntes da região da República – a avenida São João –, o PASV entrou na minha vida num domingo de 2011 em que poucos fregueses passaram pela porta de vidro com insulfilm roxo, guardada por um segurança de pequeno porte, cuja única função era explicar aos mais bebuns que não se tratava de um bar em que pudessem continuar o porre. Sentei no balcão e dividi com o Zé um cordeiro assado, recomendação do dia apresentada pela Dona Glória, a mais rabugenta das duas garçonetes sexagenárias que cuidavam da clientela como se fôssemos netos. Tive pouco contato com ela, que logo se afastou para operar as varizes e emendou o atestado com a aposentadoria.
A outra, Dona Maria, cuidou de mim por algum tempo. Ouviu as angústias dos meus vinte e poucos anos, encheu meu copo com o horrível vinho da casa, me abraçava com o avental vermelho engordurado e escreveu com a sua letra redonda, de caderno de caligrafia, a receita de lasanha ao molho branco que se perdeu dentro de algum livro. Ela também sairia de cena alguns anos depois, mas só quando teve certeza que o Cleyton tinha aprendido a servir as mesas direito. Antes disso, chegou a ter uma faca apontada contra o pescoço pela Kelly, uma garçonete que só durou três meses e foi surpreendida pela decana afanando umas fantas.
Seu Ramon, o último dos quatro sócios originais – o A de PASV –, tinha o sotaque muito forte e, mesmo quando parecia sisudo, aos poucos se soltava. Sempre atrás do balcão no turno da tarde – seu irmão e sócio José cuidava do restaurante à noite –, ele preparava caipirinhas, batidas e um cebolete inigualável, embora o do Churrasqueto chegue perto.

Apesar de geralmente descrito como restaurante espanhol – de fato, havia uma seção do vasto cardápio com pratos típicos –, o carro chefe do PASV eram as carnes, sobretudo as que acompanhavam os PFs dos fiéis que se sentavam no seu balcão em horário comercial para a comunhão com o sagrado. Para quem está acostumado com a dinâmica do Rio de Janeiro, era mais ou menos como os restaurantes portugueses que acabam servindo mais carnes na brasa e arroz à piemontese do que bacalhau e alheira.
Quando eu trabalhava na região, houve mês em que almocei no PASV todos os dias e não lembro de nenhuma semana sem que tenha ido lá pelo menos uma vez. A regra era comer sozinho um dos pratos do dia ou executivos, mas, quando arranjava companhia, conseguia explorar outros sabores. Na comemoração do Prêmio Folha de um amigo, por exemplo, lhe presenteei com um arroz del puerto, uma espécie de paella econômica e com menos ingredientes. Em três pessoas educadas, dava para dividir um saborosíssimo camarão à grega, cujo sucessor espiritual é o servido empratado pela Mara Rasmussen no Box 62.
Perdi as contas de cenas que escrevi ou tentei escrever tendo o PASV como locação, sem gostar do resultado de nenhuma. A que mais chegou próximo foi baseada em uma conversa real que espreitei da mesa ao lado. Um camarada barbudo, vestido entre o comunista que a Elaine namora em Seinfeld e um professor de antropologia da USP, tinha convidado a ex-mulher, uma madame-que-tenta-disfarçar-a-riqueza-das-perdizes, para almoçar no domingo. A certa altura, quando o constrangimento e a curiosidade contaminavam todas as mesas ao redor, ele revela o motivo do convite: queria pedir que ela fosse fiadora do apartamento para o qual pretendia se mudar com a nova namoradinha. A moça se levantou muda e apenas virou as costas. Foi a única vez que endossei alguém abandonando o PASV.

O PASV amou-me por nove anos e meia dúzia de cartões Sodexo. Quando as notícias do encerramento das atividades começaram a circular, consegui o contato do filho de um dos sócios e expliquei a minha relação com o PASV. Também falei que tinha interesse em ficar com uma das placas que adornavam o salão, de preferência a que anunciava cozido à espanhola todos os domingos. Ele me respondeu, chegou a dizer que eu poderia ficar com a placa, mas a comunicação se encerrou do nada antes que combinássemos detalhes. Achei melhor não insistir. Talvez, para ele, realmente houvesse coisa mais importante para prestar atenção.
Na mesma época, recebi mensagens lamuriosas de pessoas que passaram pela minha vida em vários momentos. No meio da confusão geral da pandemia e da tristeza específica pelo fechamento do meu restaurante favorito, ao menos senti de orgulho ter dividido as mesas e sobretudo o balcão do PASV com tanta gente querida. Fui levado de volta àquela época recentemente, ao mencioná-lo de passagem em um texto e mais de um leitor vir falar comigo que foi justamente dessa lembrança que mais gostaram na crônica. Se lembrarem de mim quando ouvirem falar que na avenida São João, entre a rua Vitória e o largo do Arouche, existiu o restaurante mais bacana que o Centro de São Paulo já viu, vou ter certeza que uma coisa na vida eu fiz certo.


O PASV fechou, mas o cordeiro com brócolis vai morar na memória afetiva até o fim dos meus dias.
Um clássico. Ia muito com uma namorada que também já desapareceu. Gracias por destruir minha sexta-feira!