Se tem um ditado que odeio é de amarga já basta a vida. Primeiro porque eu prefiro doces não tão melados e o dito quase sempre acompanha uma sobremesa com açúcar em excesso. Mas o que pega mais ainda é que essa obsessão pelo lado doce da vida acaba eclipsando os necessários momentos acerbos. Alceu Valença compreende isso quando contrasta os beijos travosos de umbu-cajá com a saliva doce como o mel da abelha uruçu para compor a Morena Tropicana a ser desfrutada. Faltou ao Chico Buarque, em Bom conselho, cantar que de tanto doce a vida basta.
Eu tenho um senso de humor que foi moldado por Seinfeld. Acho George Costanza o personagem mais incrível já criado. É neurótico, imaturo, vingativo, desconfiado, metódico, com um comportamento que alterna sem nenhuma suavidade, e mesmo assim de forma convincente, entre alguém que já desistiu de tudo e um desesperado para aproveitar a vida antes que a inevitável morte abra a porta sem tocar campainha – ou deixar uma mensagem na sua secretária eletrônica. É trágico na acepção grega da palavra e Édipo já nos ensinou, há 2.500 anos, o que acontece quando tentamos lutar contra o destino. Falando em Jocasta, quando tentaram dar aquele manjado golpe do WhatsApp clonado na minha mãe, ela teve certeza de que não era eu porque o estelionatário usou emojis solares demais.
Monty Python à parte, o humor judaico é o que mais me cai bem. Passei a pandemia querendo ser melhor amigo da Fran Lebowitz depois que assisti Pretend it’s a city, ainda volto aos melhores diálogos do Woody Allen para aprender a escrever e, talvez isso diga bastante sobre mim, acho Kafka engraçadíssimo – a versão da Elvira Vigna que o diga. Tanto que, no mar de ficção em que costumo me afogar, Moisés abriu caminho para um ensaio sobre essa vertente humorística, que recomendo sempre que posso. Poderia dizer que cogito a conversão ao judaísmo pelo humor? Sim.
E por que eu gosto tanto do humor feito por judeus? Por conta de uma característica recorrente na piada judaica que, historicamente, a diferencia do humor & piadas mais ordinário: em vez de escolher o outro, o diferente, o inadequado como alvo, opta pela autorreferência, seja para tirar sarro do próprio grupo cultural, seja para o autoelogio, ou finalmente para zombar do autoelogio, fechando o circuito. E só funciona com a dose ideal de acidez para não cair na autoindulgência barata. É preciso ser ranzinza, um pouco impaciente, mas não é só. É preciso ter o olho treinado para ver o lado ruim das coisas que nos cercam, saber que sempre tudo pode dar errado e que talvez seja até pior se tudo der certo. Se me preparei tanto para a tragédia, como as coisas ousam ir bem? O resumo é que eu torço o nariz pra muita coisa e desconfio do resto. Não é fácil estar na minha pele. Não é como se eu escolhesse não relaxar e não desfrutar da doçura da vida, é que simplesmente não acho graça. A grande luta diária é para deitar a cabeça no travesseiro tendo vivido mais próximo da Fran Lebowitz do que do Vovô Simpson gritando contra as nuvens.
Pelo tom que esta newsletter assumiu desde o primeiro número, o obstinado leitor já percebeu que eu vejo a São Paulo que aprendi a viver e amar escapar pelos meus dedos. Tudo bem que ontem foi meu aniversário de 37 anos e isso me bota mais comovido que a lua e o conhaque, mas desta vez não falo com tom de nostalgia. Tenho bastante consciência de que uma das características de uma cidade do porte de São Paulo é estar em eterna mudança e, apesar da sua agressividade e aridez, a cidade é um monstro que devora e incorpora o novo, o que vem de fora. Um lugar que foi construído e renovado a cada onda migratória. Ninguém é daqui e todo mundo pertence à cidade. Se hoje quem dá as cartas está transformando Pinheiros em Moema ou a Liberdade em cenário de papelão, é porque o estrago foi feito décadas antes. Para evitar maiores tragédias, temos que entender quais batalhas estão em curso hoje.
(Meu avô costumava dizer que o que diferencia São Paulo de qualquer outra localidade é a oportunidade de prosperar. Eu ouvia isso e achava uma bobagem, sobretudo por ser contraditório com a trajetória dele, que nunca prosperou de fato. Mas aos poucos fui entendendo que ele não estava falando de se tornar fico, e sim de se movimentar, ter um capital de giro e, com sorte, ficar melhor do que você estava quando chegou. É o mesmo discurso de cada motorista de Uber que me vê com um livro na mão e pergunta se eu conheço um título aleatório de autoajuda que ele tá lendo, da Gisélia, que faxina meu apartamento a cada três semanas, das igrejas neopentecostais, do Pablo Marçal e outros pilantras. E é um discurso ilusório, mas sedutor, e ganha eco quando pensamos em cada trabalhador precarizado que se enxerga como empreendedor.)
Não é só normal como esperado que uma cidade em constante mudança vá deixando de ser, dia após dia, familiar. Então cabe a você, que quer vivê-la, sustentar suas expectativas nos pilares corretos. Estamos mais perto da felicidade que acompanha a previsibilidade quando nossas colunas de sustentação seguem intactas. Eu não era capaz de imaginar o Centro de São Paulo sem o PASV e caí do cavalo. Já ver a Cultura do conjunto nacional definhando foi como dar adeus à minha pós-adolescência, quando o dinheiro só dava para a meia-entrada da sessão do Belas Artes e o resto do sábado eu passava nos pufes no deque da livraria.


E isso porque a São Paulo desses meus ingênuos anos já era uma caricatura da cidade interessante que só conheço pelas histórias de solteiro do meu pai e de juventude do meu avô, pelos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço e pelas letras do Língua de Trapo e do Tatit. Assim como o “Riviera” atual é uma paródia do restaurante de mesmo nome que funcionou na esquina da Paulista com a Consolação até 2006 e foi reinaugurado por Facundo Guerra e Alex Atala em 2012. A primeira tentativa de resgate da esquina parece que não deu muito certo e o negócio foi assumido por uma tal Fábrica de Bares, grupo que administra o Bar Brahma, toca a operação dos atuais Bar Leo e Amigo Leal, arrematou a ex-Love Story, não conseguiu manter o Filial e comete a abertura do Orfeu todos os dias. Não dá pra dizer que a chama da boemia não foi mantida acesa – só não te contam que a vela é de sétimo dia.
Estive no ex-Riviera após um filme no Belas Artes num horário cedo demais para já ter almoçado, mas tarde o suficiente para que eu saísse faminto da sessão. Devia ser umas 16 ou 17h e pouca coisa estava aberta naquela segunda-feira do início de janeiro. Não que eu esperasse muita coisa nesse horário cretino, mas o sanduíche que pedi estava mais triste que os funcionários de plantão.
Falei do Riviera e da Fábrica de Bares porque li outro dia que o mesmo grupo assumiu o Café Girondino, outro clássico sem o qual não imaginava o Centro e que por pouco não fechou de vez. O Girondino é importante pra mim porque foi lá que tomei o primeiro espresso da minha vida, numa tarde de 2006 ou 2007. Nesse mesmo dia, o meu amigo Zé me levou para conhecer a Sanfran sem que tivéssemos ideia de que estudaria ali alguns anos depois. Durante os cinco anos na faculdade de Direito, cruzei muito a rua São Bento para colocar a cabeça no lugar e acabava quase sempre tomando um café no Girondino, de preferência em uma das mesas perto da janela de onde se via o mosteiro. Não sei o que tem sido do lugar sob nova direção, contudo, como disse alguns parágrafos acima, torço o nariz pra muita coisa e desconfio do resto.
Existe uma enunciação muito bonita de Lina Bo Bardi de que “O tempo linear é uma invenção do ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim”. É essa compreensão que permite que a temporalidade ganhe contornos de sonho, em que passado, presente e futuro – essas construções históricas – aconteçam concomitantemente. É uma ideia que, agora aos 37 anos, tento exercitar quando penso no Riviera que não conheci, nos pufes da livraria Cultura das tardes de sábado dos meus 20 anos, dos domingos apoiando a barriga no balcão do PASV e na vista da janela do Girondino. Faz de conta que São Paulo ainda é uma cidade.
você me deprime com tanto estilo ❤️
Só não concordo com esse ditado quando me falam do cafezinho. rs