As únicas festas de fim de ano que passaram batidas por mim foram as de 2013. Eu tinha acabado de me formar na faculdade e minha família mais próxima, a essa altura quase toda morando no interior, veio para São Paulo para aproveitar o baile cujos boletos eram pagos desde o segundo semestre. Aos 81 anos, minha avó foi a parceira de valsa perfeita. Sabia dançar tanto quanto eu, tirava sarro de cada afetação e tornou um pouco mais suave a experiência contraditória daquele evento – fiquei a maior parte da noite encarando o horizonte do Expo Center Norte decorado como cruzeiro do Roberto Carlos e abarrotado de formandos e familiares orgulhosos de trajetórias medíocres enquanto tentava entender se algo tangível havia sobrado dos cinco anos que estive na graduação. Aquela noite, contudo, se estendeu pelo resto de dezembro e começo de janeiro: a vó Elza, não mais acostumada a passar tanto tempo fora de casa e sensibilizada com a viagem, a formatura e o jantar, começou a passar mal já na estrada, foi direto ao pronto socorro, ficou vários dias internada e, com muita delonga, entre o natal e o ano novo, foi submetida a uma hernioplastia.
Ficamos todos desesperados, planos foram desfeitos, vidas foram pausadas. Ela, que sempre foi o coração da família, poderia nos deixar órfãos justamente em uma época do ano tão permeável às emoções mais dilacerantes. E houve momentos em que a morte da minha avó parecia questão de horas. Ela não se alimentava por via oral, a hérnia obstruía o intestino, a boca estava seca, o ânimo foi se esvaindo, os sinais vitais eram instáveis, ela só tinha uma pouco de sossego com muito analgésico, mas nenhum médico da Santa Casa achava conveniente operá-la. A escolha do vocábulo importa. Cada dia que passava o que se escancarava era a inconveniência – ao cirurgião de plantão, não à paciente e aos familiares – de submeter minha avó a uma cirurgia no final de ano. Não foram poucos os médicos conhecidos a que recorri desesperadamente atrás de alguma ilustração. Uma ex-namorada, colegas de escola um ano mais velhos ou mais novos, vizinhos não tão próximos, parentes de amigos, e todos foram uníssonos ao defender que, diante do quadro clínico da minha avó, a cirurgia emergencial era a única alternativa razoável. Havia riscos envolvendo a aplicação de anestesia em uma octogenária que fumava um maço de free longo por dia? Sem dúvida, mas também havia a convicção de que, sem a cirurgia, ela não sobreviveria.
Eu não lembro exatamente quanto tempo correu entre a primeira entrada no hospital e sua alta, já na semana inaugural de 2014. Os dias se tornaram uma massa amorfa e não cabiam no calendário ou no relógio. Em algum momento descobrimos por acaso que era natal e abrir a janela do quarto poderia revelar um sol de cegar argelino ou uma madrugada desestrelada sem que nos surpreendêssemos. Não tenho ideia do percurso da casa dos meus pais até a Santa Casa, de onde parava o carro, de como fiz as refeições, da fisionomia de nenhuma enfermeira – médicos mal davam as caras –, de onde vinham os picolés de limão que minha avó usava para umedecer o lábio, das conversas que os outros parentes tinham entre eles, se eu usava calça comprida ou bermuda, se o sofá dos acompanhantes era confortável ou se tive dor nas costas. Mas lembro exatamente do que me fez companhia: uma edição velhinha, nada especial, com a lombada esgarçada e um carimbo de biblioteca escolar indicando que fora subtraída de Sagarana.
A hora e vez anterior que tinha lido esses contos de Guimarães Rosa havia sido para o vestibular, com o olhar treinado pelo professor de literatura para saber responder questões de múltipla escolha. Aliás, eu lembro exatamente da única questão sobre Sagarana que caiu na segunda fase daquela Fuvest: após apresentar um trecho de Minha Gente falando sobre saudade e um sabiá, a banca pedia para que o candidato identificasse uma reminiscência a Canção do Exílio.

Nada castra mais a literatura e o prazer da leitura que cobrar o conteúdo em uma prova. E nunca mais tive uma experiência de leitura tão viva como a de reler Sagarana ao lado da minha avó em uma cama de hospital, reagindo às minhas tentativas de conversa como se fosse uma personagem de Sarapalha.
O tempo que eu ignorava como passava longe daquele leito tinha gosto, cor, sabor, dentro do meu livro. Eu finalmente entendia a estrutura do jogo de xadrez de Minha Gente, as idas e vindas entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes, decorava a oração de São Marcos, sentia a tremedeira de Ribeiro e do primo Argemiro e aprendia o idioma dos bois. Fiz comentários no livro e preenchi sobre ele páginas e páginas de um caderno sem pauta em que tinha o hábito – abandonado por tontice – de anotar leituras.
Curioso como um desvio de rota tão indesejado tivesse me proporcionado um encontro tão interessante com um dos meus livros favoritos da vida – minha primeira tatuagem, por exemplo, é uma das ilustrações de Poty para Conversa de Bois – enquanto hoje vivo ramelando leituras se não encontro condições ideais. Infelizmente não é todo dia que consigo exercer o direito de ler enquanto janto sozinho.
Voltei àqueles dias entre 2013 e 2014 porque há algo que me leva de volta ao prédio em que achei que me despediria da minha avó e nada mais parece merecer meu foco. No mesmo centro cirúrgico em que a Dona Elza foi submetida a uma arriscada hernioplastia, minha mãe passou1 por uma cirurgia ortopédica em decorrência de um acidente doméstico. A idade, o tipo de intervenção e os fatores de risco são muito menores no caso dela, ainda que já tenha mais que 60 anos. De toda forma, não conseguiria escrever e/ou enviar aos assinantes nenhum texto que não fosse este. Seria uma traição comigo mesmo, incapaz de dividir o foco.
Hoje, como há 11 anos, um desvio de rota indesejado proporciona um encontro inadiável com a literatura. E quando um burrinho pedrês passa selado a gente monta. Sobretudo se atender quando o chamamos de Sete-de-Ouros.
Estive na frente deste texto antes, durante e depois da cirurgia. Foi um procedimento demorado, mas deu tudo certo. Bora pra recuperação.
Querido, uma das melhores coisas é ler sua escrita, muito obrigada pela partilha. Espero vê-lo quando estiver em São Paulo. Um abraço pra ti!
É sempre muito bom te ler por aqui. Melhoras. Abs