Existem poucos testes de playboyzice tão eficientes como iniciar uma conversa sobre ônibus em São Paulo. Se há engajamento, seja um brilho no olho por uma linha salvadora, seja a raiva descompensada por um itinerário descontinuado que o decorrer das décadas não foi capaz de dissipar, é bem provável que estamos diante de alguém do corre – e tem gente que é tão do corre que até compõe música citando linha de ônibus e deixa bonito. Já, se a pessoa não conhece os busões, não tem um trajeto favorito ou não fala com nostalgia do antigo passe de integração em papel, pode ter certeza que é playboy. Quando me vejo acuado num papo sobre a antiga CMTC, tenho a desculpa de ter passado minha adolescência toda morando no interior, mas, cá entre nós, ficando em São Paulo, o mais provável é que acabasse no lado dos boyzinho.
Meus pais sempre tiveram um perfil entre a superproteção, o sentimento de dever de me levar nos lugares e a imposição de limites mais rigorosos que os dos meus amigos. Como regra, até mais ou menos uns 14 anos, se eu precisasse me deslocar até algum lugar, eles me levavam. Se eles não pudessem me levar, eu não iria. Simples assim. Não existia a opção de pegar um ônibus sozinho, e depender de carona de estranhos seria uma vergonha que eles não admitiam passar. Foi assim no interior e acredito que seria pior na Capital.
Descartados os pequenos deslocamentos que eu fazia na extinta linha Imirim-Itaim acompanhando a minha avó na primeira metade da década de 90, meu relacionamento com os bólidos paulistanos começa quando retorno a São Paulo para cursar História na FFLCH. Os primeiros meses eu passei na casa de um tio, na Vila Santa Catarina, e meu batismo de fogo, antes de vencer a burocracia da USP e da SPTrans pelo direito ao bilhete único de estudante, foi perder mais tempo espremido no Jardim Miriam 577T/10 do que passaria no semileito da Danúbio Azul que me levava à casa dos meus pais, 200 quilómetros Anhanguera a dentro. Aqui abro parênteses: sabe o que significa o /10 nesse prefixo? Significa que ela é uma linha principal, e que há variações da 577T com leves mudanças no trajeto. E o 7 do meio? Que o ônibus passa perto de estações de metrô. Aprendi esse e outros significados nos letreiros dos ônibus paulistanos com a Vanessa Bárbara nesta coluna.
Mas bem antes de entender a lógica da formação dos números das linhas eu já tinha aprendido como me deslocar por São Paulo de ônibus, intuía a lógica dos itinerários, lançava mão de boas estratégias para fazer o bilhete único render, conseguia pegar caronas em pontos finais – um salve pro Cauby Peixoto da Vila Gomes, que me deixava entrar pela porta de trás – e sabia descer nos pontos certos, ao contrário da vez que perdi a parada da Paulista e fui parar no Anhangabaú porque tive vergonha de falar com o cobrador. Não que isso fosse suficiente para que eu fosse incorporado aos do corre, mas, pelo menos, eu não seria confundido com o colega da turma de História Ibérica II que, na rua da Consolação, viu um ônibus se aproximando e perguntou Côu-reib, o que seria isso? quando leu COHAB Educandário no letreiro.
Para ser descolado como os do corre, infelizmente, eu teria que nascer de novo. Eles conseguiam fazer top10 de linhas prediletas e desprezíveis e eu malemá tinha uma linha de estimação. Tinha e sigo tendo. Falo da Machado de Assis/Cardoso de Almeida - 408A-10. Por alguns anos, habitei um muquifo na rua Machado de Assis, entre a Vila Mariana e a Aclimação. O horror das paredes emboloradas e dos antecedentes criminais dos moradores se contrastava com a bela localização do pensionato, que hoje dá lugar a um espigão. Eu já estagiava na Paulista e estudava à noite na faculdade de Direito quando, num mês de aperto, pesquisei um trajeto alternativo entre as estações Ana Rosa e Sé do metrô para aproveitar o passe que eu usava do trabalho até minha casa – pra quem não é de São Paulo, o bilhete único permite que usemos até quatro ônibus em um período de três horas pagando apenas uma passagem, mas a integração com o metrô não é integral. A opção de trajeto para economizar a tarifa era simples: pegar o trólebus com destino à Cardoso de Almeida no ponto inicial, a dois quarteirões de casa.
Foi assim que descobri a linha que talvez seja a mais bucólica da cidade. Após o ônibus deixar o rabicho da Vila Mariana para trás, atravessa logradouros bonitos com nomes de pedras preciosas e planetas da Aclimação, infiltra-se na Liberdade pela porta dos fundos e zanza por ruas apertadas onde eu reparava no vai-e-vem dos alunos do Anglo e no burburinho das colônias orientais com os preparativos do turno da noite dos restaurantes. Depois ele chega a dar uma roçadinha no Palácio da Justiça, contorna a Praça da Sé, passa bem em frente ao Pátio do Colégio, cruza o viaduto do Chá e segue tranquilo em direção ao Pacaembu, mas aí eu já tinha descido alguns pontos antes. É uma linha que funciona desde 1949 e, de tão charmosa, já foi indicada pelo Carpinejar como um dos melhores lugares para ler em São Paulo – eu nunca poderia conferir, já que enjoo quando tento ler em movimento.
Voltei a pegar essa linha, dessa vez no sentido Machado de Assis, quando morava na avenida São Luís e trabalhava presencialmente na Sé. Eram só três pontos até meu destino, mas usar paletó e gravata nos primeiros verões da Era de Apocalipse me obrigava a optar pelo ônibus. Não teve uma única vez que eu não tenha pensado em não desembarcar na frente do Fórum João Mendes e apenas me deixar levar, primeiro até a rua em que morei 15 anos atrás, depois fazer o trajeto de volta até a PUC, acompanhando a cidade passar por mim, vista do banco mais alto, a testa colada na janela. Mas nunca fui capaz de fazer isso. Sempre houve as obrigações, os compromissos, o expediente. Penso no Juventus da Mooca e na vontade de largar tudo e assistir a um jogo no meio da tarde, na rua Javari, com meia dúzia de aposentados do bairro, como um dia combinei com o Pasquale Cipro Neto. Penso nas pessoas andando a esmo, fumando seus cigarros, carregando livros, demorando nos cafés, passeando com seus cachorros, cruzando comigo de passos apertados na volta do almoço.
Penso nos universos que cada bairro de subúrbio contém, depois em cada rua, quarteirão, sobrado, cômodo ou até um taco do chão – uma espécie de fractal de mundos imagináveis. Penso nos contos esparsos que não consigo organizar, nos romances que comecei a escrever e não engatam. Tenho sonhado que corto o cabelo todas as noites. Tenho cogitado que, se a primeira tarefa do meu dia for raspar a barba antes de me sentar no computador, eu seria um escritor melhor. Se eu soubesse tomar um ônibus para uma vida assim, corria agora para o ponto.
Mais um texto muito bom. Quando vim pra São Paulo, pegava muito o SP Market, partindo do metrô Conceição. Ele cortava a av Santa Catarina. Li As correções nele. O ano era 2012. Tinha ganhado uma bolsa pra estudar jornalismo. Estava tão envolvido com a leitura do romance, que as vezes passava do ponto na Av. Interlagos.
Eu morei na Machado de Assis, do lado onde ficava o ponto final do trólebus. Q show de texto. Vou pegar um dia para revisitar o lugar. Obrigado por isso.