Em determinada altura de Alguns aspectos do conto, clássico ensaio-aula de Cortázar sobre o gênero [em que foi] maior, o autor relata uma experiência compartilhada com outros escritores. No contexto de interações sociais com pessoas que naturalmente conheciam o seu ofício, era comum que lhe contassem histórias “comoventes, divertidas ou estranhas” e, após a conclusão, lhe oferecessem a anedota como presente com a sugestão de que seria uma ótima matéria-prima para sua literatura. O problema é que não houve uma única vez em que a oferta fizesse sentido. Passado mais de 60 anos da primeira aparição do ensaio, no segundo número da revista de la Casa de las Américas, este escritor paulistano pode dizer que quase nada mudou.
Por que esses relatos, ao contrário do que pensam os não-escritores, não dão um bom conto? Como toda pergunta que se preze, ela contém a reposta: porque o que difere um escritor de um não-escritor, segundo a minha parca compreensão, não é a quantidade ou regularidade de textos escritos, o fato de serem publicados ou não, o reconhecimento crítico, acadêmico, do público, de seus pares ou mesmo a habilidade de contar uma história, e sim a busca por aquilo que o Cortázar chamaria de significativo. Às vezes a gente só quer ouvir uma boa história e não precisamos de escritores para isso. No entanto, se quisermos dar literaturidade à coisa, é necessário que sejamos um pouco investigadores e escarafunchemos o relato até encontrar uma singularidade que permita ao leitor, quando chegar à última linha e fechar o livro, enxergar o mundo – ou quase sempre uma fatia dele – de forma diferente de antes de iniciar a leitura. E isso só será possível se o autor encontrar aquilo que é significativo, de preferência um detalhe que, apesar de óbvio, a olhos nus jamais acessaríamos – afinal, como repito sempre que tenho oportunidade, a literatura é lente.

Escrever com regularidade para esta newsletter tem rendido uma espécie de autoanálise, que passa por encarar minha relação com a cidade como parte significante da minha personalidade. Quando era mais novo, eu sonhava em ir à cidade, viver a cidade, conhecer a cidade, saber o que ela escondia não como quem tem acesso a uma informação pública, e sim como quem é digno de um segredo. Não se trata necessariamente de ser admitido em um clube ou obter um conhecimento só para iniciados, como já cheguei a cogitar, mas, ao contrário, de conhecer o óbvio escondido em meio ao ordinário. Qualquer um pode entrar nesse clube, participar desse ritual, desde que preste atenção. Só que nem todos prestarão atenção. Mais que isso: a maioria não prestará, seguirá seu caminho conforme o fluxo dos passantes em uma rua pedonal sem se preocupar com as histórias que viveria se decidisse cortar o caminho de todos os dias por uma galeria. No fundo, o que eu sempre quis era ser escritor e isso se manifesta na forma como vivo a cidade.
Quando escrevo “cidade”, estou pensando no Centro. É uma associação tão automática como a que tinha quando meu avô me pegava pelo braço dizendo “vem comigo até a Cidade”. A Cidade como sinônimo de Centro, em contraposição ao subúrbio em que morávamos. O subúrbio de ruas apertadas de paralelepípedo e carros velhos estacionados na contramão, dos tênis lançados contra a fiação, dos sobrados geminados, com fachadas compostas por azulejos decorados com gotas de vidro e quintais com caquinhos de cerâmica, dos muros baixos com campainhas redondas escondendo canteiros frontais com roseiras e hortelãs. O silêncio das manhãs era violado pela flautinha-de-pã do amolador de facas e o das madrugadas pelo apito do guarda noturno. Nas ruas da minha infância, há sempre alguém pulando num pogobol, amigos mais velhos jogando taco, meninas pulando elástico – essas imagens aparecem em um ou outro conto que publiquei.
Quando eu embarcava no Opala do meu avô ou no jipe do meu pai rumo à Cidade, aos poucos as ruazinhas e sua lógica própria de engrenagem davam lugar a ruas mais largas, onde passavam ônibus e a turma do bairro não conseguia mais fechar para jogar futebol contra o time da rua de baixo ou do outro colégio. Depois desembocávamos em avenidas largas, onde os rostos denotavam pressa de atravessar São Paulo e já não era possível reconhecer os automóveis como os dos pais dos meus amigos. Eu não sabia seu nome, mas conhecia a avenida Prestes Maia – com o mosteiro de São Bento no alto à esquerda e o interminável Mirante do Vale à direita e o portal do tempo que era o viaduto Santa Ifigênia à frente – como o início do fim da jornada. Quem está acostumado com os desígnios inexplicáveis da literatura não se espanta que a Cidade estaria logo ali: bastava atravessar o Buraco (do Adhemar) e um novo mundo, com postes ornamentais de ferro do início do Século XX, edificações mastodônticas e calçadões apinhados de passantes me esperava. Alguns pontos do Centro eram âncoras e me instigavam: os hotéis baratos na ladeira da rua São Francisco que imaginava como meu destino quando eu fugisse de casa, os prédios coloridos do Artacho Jurado e o painel de Tomie Ohtake nas paredes de um edifício ao lado da ladeira da Memória.

(Curioso como essas âncoras acabaram ecoando no meu eu-adulto. A ladeira inclinadíssima da rua São Francisco se tornou meu caminho diário do metrô Anhangabaú à Faculdade de Direito; morei por cinco anos no Edifício Planalto, o Artacho da rua Maria Paula; e o painel de Tomie Ohtake foi uma referência para me localizar uma vez que, logo que retornei à São Paulo, peguei o ônibus errado, fiquei com vergonha de descer ou avisar o cobrador e acabei indo parar na Xavier de Toledo às 18h de dia útil.)
Essas âncoras, de certa forma, eram detalhes significativos em seu estado mais puro. Permitiam que eu imaginasse histórias e compusesse personagens que girassem em órbita de elementos que estavam à disposição de qualquer um, mas só seriam desposados por aqueles com o interesse no compromisso com a reconstrução ficcional da Cidade. E não há forma melhor forma de buscar esses detalhes que com o olhar virgem de uma criança. Cabe ao escritor, portanto, resgatar essa capacidade que se esvai com o tempo.
Comecei com o Cortázar e retorno a ele para encerrar. Nas célebres entrevistas que concedeu ao amigo Ernesto González Bermejo, há um trecho em que é convidado a explicar uma fala de que se recusou a renunciar à visão pueril do mundo, embora fosse o preço geralmente pago por quem envelhecia. Dentro de uma longa divagação sobre diferenças entre adultos e crianças quanto a reações e prioridades, Cortázar traz o que pode ser uma das chaves centrais de compreensão da sua obra: uma perspectiva de lúdico, “não como uma visão trivial, infantil (no sentido que os adultos dão à palavra infantil), mas sim uma atividade profundamente séria”, e conclui que a brincadeira deve ser “uma coisa que tem sua importância em si, um sistema próprio de valores e que pode dar uma grande plenitude a quem a pratica”. Nenhuma literatura que não seja lúdica me interessa.
Querido, toda semana esse espanto! Muito bom te ler! E olha, é óbvio que esse texto lindo me levou de volta à sua carta a BAs. Muito obrigada! ♥️♥️♥️
Adorei o texto!!