Eu amo listas
breves comentários sobre as escolhas da Folha, 20 livros de contos imperdíveis e momento baú
Eu amo listas. Sua composição, suas incongruências, seus eleitores, sua repercussão. Contei num texto recente que eu mesmo desenhei a minha biblioteca em torno da lista dos 100 maiores romances do século XX que a Folha pulicou em uma época em que esperava o intervalo de 100 anos acabar para passá-lo a limpo. E nem acho que seja caso de acusar o editor responsável pelo conclave de 2025 de ejaculação precoce. Não é preciso conhecer intimamente o meio para entender que existe um ciclo de retrovalidação envolvendo grandes casas editoriais, os cadernos culturais de maior circulação e os prêmios mais relevantes. Num dia você é jurado, noutro você tá concorrendo. Numa semana você escreve a resenha e na seguinte tá fumando um cigarro atrás do outro enquanto espera a última banca do bairro abrir para comprar o jornal e ver quantas estrelinhas seu livro levou. Eu sei, isso foi muito específico.
Na minha passagem pela Ilustrada, na década passada, o sonho de toda a redação, incluindo o meu, era ter o original meio bostola notado por algum editor da Companhia das Letras. Incontáveis são as histórias de editores grandões dando piti porque tal suplemento não deu espaço suficiente para o genial lançamento do mês. É o mercado, estúpido, diria o outro. (O insuspeitíssimo Joca Reiners Terron – visto que eleitor & eleito – explica muito melhor que eu o caráter de peça de marketing da lista.) Um mercado mais plural que o da virada do século? Ok, mas até a Braskem tem um departamento de ESG. Estaríamos muito piores sem esses agentes? Já tive mais certezas quanto a isso. De qualquer forma, somos também um tanto estúpidos quando, na falta de crivos de confiança mais robustos, acabamos pautados apenas pelo mercado.

Aí que entra a minha tese: listas pessoais são muito, mas muito, mais interessantes que listas coletivas. Nestas, há uma tendência ao consenso derivada de alguns fatores, incluindo o já mencionado poderio econômico das grandes editoras, o que reflete na presença maciça do maior grupo entre os mais votados. Afinal, é mais fácil que os 101 jurados tenham lido ou se deparado com um livro da Companhia das Letras do que com uma publicação da Garupa Edições. Isso sem mencionar a influência das pautas do momento, a autocensura e o senso de importância justiça nos critérios do votante. Amigos por quem nutro imenso apreço me confessaram que tentaram não usar o gosto pessoal como critério. Pessoas não tão próximas, mas que respeito intelectualmente, admitiram o oposto. E achei a relação individual de todos os mencionados mais interessante que o catálogo final, uma vez que sempre revelava um ruído, uma idiossincrasia, uma indicação que destoa. É na lista pessoal que a gente vê o brilho no olho, aquela fagulha, uma pista de que esse troço chamado literatura ainda é capaz de mexer com a gente ao largo dos pactos invisíveis.
Para sustentar meu ponto, voltemos ao inventário do século XX, do qual já temos uma distância mais adequada para palpitar. O top 3 é formado por James Joyce, Proust e Kafka, o que surpreende zero leitores & não-leitores. Mas a informação que Carlos Heitor Cony votou no obscuro O anão, do sueco Pär Lagervist, e em Fontamara, romance antifascista do italiano Ignazio Silone, aguçou a minha curiosidade por essas obras e por elas me aventurei com muito mais prazer do que quando tentei percorrer o soporífero caminho de Swan – os proustianos que me perdoem.
Momento A Lábia
Outra característica da lista elaborada na Barão de Limeira é seu romance-centrismo, que, odeio ser repetitivo, também é reflexo da preferência do mercado editorial pelo gênero. Ótimos livros de contos foram lembrados, mas há ausências muito notáveis. Partindo da minha predileção pela narrativa breve, quebrei a cabeça para chegar em apenas 20 livros lançados no século que acho que merecem ser lidos. Quem sabe algum deles não assume o lugar que O anão e Fontamara ocuparam na minha biblioteca afetiva. A ordem não tem a ver com gosto, qualidade ou importância, mas não é totalmente aleatória. Quem adivinhar o critério, ganha um like.
01) Carol Rodrigues – Sem vista para o mar (Edith – 2014)
Sem vista para o mar foi uma das leituras mais impressionantes que já fiz. Saiu no mesmo ano que meu primeiro livro e quase fez com que eu desistisse da literatura. Jamais faria com as palavras o que ela fazia. Só ela usa vírgula desse jeito, constrói frases impossíveis e narra vida de seus personagens com tanta ternura.
02) Frederico Klumb – Rua Maravilha Tristeza (Jabuticaba – 2022)
Esquisitos como o título, os cinco contos são resultado de perceptível reflexão sobre os limites das formas breves, com ecos de Sérgio Sant’anna, Ali Smith, Cortázar, Silvina Ocampo e Akutagawa, para ficar só na listagem de F., o narrador/alter ego do último texto. O livro é uma espécie de ode à narrativa breve, e a diversidade entre os textos é prova do ótimo repertório de um autor que parece consciente de todo o viço que um conto bem-escrito pode apresentar.
03) Flavio Cafieiro – Dez centímetros acima do chão (Cosac Naify – 2014)
Vencedor do prestigiado concurso literário da prefeitura de BH, o livro reúne contos que abusam de recursos visuais e artísticos para desafiar os limites do gênero. Um texto traz rasuras que contam mais do que escondem e, em outro, pouco a pouco as notas de rodapé vão tomando lugar da narrativa principal. Livraço.
04) Paulo Junior – São Bernardo sitiada (Nós e Edith – 2017)
São Bernardo sitiada é um claro exemplar de livro de autor que sabe observar o que acontece na rua e corre pra escrever. Não que eu esteja chamando Paulo Junior de zé-povinho, mas são inegáveis a aguçada percepção das ruas e a capacidade de condensá-la em contos redondíssimos.
05) Calila das Mercês – Planta oração (Nós – 2022)
Calila das Mercês é uma contadora de histórias com um quê de atemporal. A leitura é tão gostosa que não parece que a narrativa teve começo ou que se encerrou com o ponto final, mas que sempre esteve no ar, cabendo à autora colhê-la com o maior cuidado e respeito para nos privilegiar com a comunhão. O trato com a linguagem é reverencial, como quem pede licença a cada palavra usada, mas ouve como resposta “que bobagem, eu sempre fui sua”.
06) Raquel Laranjeira Pais – Trinta e três de agosto (Perspectiva – 2019)
Raquel é portuguesa, mas a editora é brasileira. E o livro? O livro deve ter sido escrito dentro de uma toca em que a autora entrou atrás de um coelho branco. Aqui, o improvável é quem dá as cartas e um dia que não está no calendário é o mais aguardado. Exímia narradora de instantes e dotada de um senso de ritmo apuradíssimo, Raquel está demorando demais para publicar um segundo livro.
07) Luana Chnaiderman – Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva – 2018)
A Luana é uma das pessoas mais divertidas que eu conheço. E isso acontece justamente porque ela leva a diversão mais a sério do que as coisas supostamente graves. Nessas receitas – engraçadas, tensas, até mortais –, ela mostra que nem tudo com que estamos acostumados vai entregar o que esperamos. E é aí que mora a matéria-prima da sua literatura.
08) Odorico Leal – Nostalgias canibais (Ayiné – 2024)
Assim que comecei a ler o primeiro conto, me perguntei se Odorico conseguiria sustentar uma narrativa de 30 páginas que se inicia com batéis, maçarandubas, arcebispados e fortins. Conseguiu e muito bem. Talvez seja o melhor conto brasileiro escrito nos últimos 25 anos, embora talvez nem conto seja. Como disse em outra oportunidade, um livro adequado para satisfazer um leitor cansado dos sambas de uma nota só tocados por aí.
09) Gustavo Pacheco – Alguns humanos (Tinta da China – 2018)
Gustavo Pacheco é um tarado por literatura. Obcecado pela prosa perfeita, entra nas bibliotecas e livrarias rogando por um livro que lhe entorpeça. E por conhecer tão bem os efeitos que um ótimo livro pode fazer no leitor, nos entregou narrativas incríveis, diversas no estilo, no foco e no tema, mas próximas na investigação do que é verdadeiramente humano – e talvez seja a capacidade de se emocionar diante de um texto impecável.
10) Marilene Felinto – Mulher feita e outros contos (Fósforo – 2022)
Apesar de veterana na literatura e autora de um dos romances mais inventivos do último quinto do século passado, Marilene Felinto não vinha sendo olhada com o respeito que merece pelo mercado editorial. Isso vem mudando nos últimos anos e a Fósforo acertou em cheio ao publicar essa reunião de contos com personagens espertas e prontas para entender alguma coisa grandiosa – mesmo que disfarçada de diminuta – no mundo.
11) Paulliny Tort – Erva brava (Fósforo – 2021)
Quando Erva brava saiu, eu morri de inveja. Queria não só ter escrito aqueles contos, como também ter inventado a fictícia Buriti Pequeno, a cidade protagonista. Acompanhamos o impacto do agronegócio, a ampliação do acesso aos bens de consumo, a epidemia do crack no interior e o abandono de tradições. Nítido exemplo de como a literatura pode ser uma lente para questões contemporâneas fundamentais sem cair no panfletário.
12) Cristhiano Aguiar – Na outra margem, o Leviatã (Lote 42 – 2018)
Quem é fã do Cristhiano Aguiar antes do Gótico Nordestino sabe que as narrativas marcadas pelo insólito e que desafiam a lógica da dita realidade contam com sua predileção desde sempre. Aqui, nem mesmo as histórias mais fantásticas escapam do tom prosaico e é na trivialidade dos eventos que acessamos as angústias dos protagonistas.
13) Paulo Henriques Britto – O castiçal florentino (Companhia das Letras – 2021)
O nosso recém-imortal publica muito menos prosa do que deveria e a prova é este O castiçal florentino. Aqui o tom irônico dos narradores é onipresente e ultrapassa o comentário das situações que envolvem os personagens, questionando também as estruturas do gênero e as lições de Tchekhov, citado nominalmente. O exercício crítico é levado ao extremo no conto “História sem nome”, em que a mesma cena é reescrita e comentada. Também não é aleatória a brincadeira com o mestre russo, historicamente contraposto a Poe. E é ao autor americano que Britto parece se referir ao estruturar os contos com destaque no epílogo. Mas o faz de modo moderno: os finais parecem correr silenciosamente em paralelo a todo o resto, emergindo não só para arrebatar como também para manter o fio narrativo tensionado.
14) Marcílio França Castro – Histórias naturais (Companhia das Letras – 2016)
Um dia encontrei Marcílio França Castro numa espelunca na rua Sapucaí, em Belo Horizonte. A única coisa que parecia seguro beber naquele buraco era o hoje mal-afamado Campari e já estava na quarta dose quando tive coragem de perguntar se era mesmo ele. Afinal, não é toda noite que heróis resolvem brincar com mortais. Seus amigos passaram o resto da noite zoando que ele era escritor famoso, reconhecido pelos seus leitores até no bar. E todo leitor é pouco para esta pérola, em que precisão técnica e o olhar apurado para o que é estranho e significativo se mesclam.
15) Veronica Stigger – Sul (34 – 2016)
Talvez nem seja o meu livro de contos preferido de Stigger, mas Sul tem uma astúcia e uma consciência literária muito acima da média. Na verdade e a rigor, só um dos três (ou quatro?) textos deste livro é um conto, mas o poema e a dramaturgia que o seguem também respeitam certas poética do gênero e funcionam aqui como reveladores de nuances de uma história sangrenta.
16) Iara Biderman – Tantra e a arte de cortar cebolas (34 – 2024)
A estreia na ficção de Iara Biderman é provocativa desde o título. Textos curtos ou curtíssimos, que nos tragam de imediato para um mundo que é familiar, mas estranho; que sempre existiu, mas parece ter sido criado com esmero sem a necessidade de qualquer descrição. E é nesses momentos que a gente percebe a mão de uma escritora competente: quando ela não está aparente. A palavra bem garimpada, burilada e encaixada no lugar exato.
17) Mário Medeiros – Gosto de amora (Malê – 2019)
Um dos orgulhos que tenho nesses anos de meio literário e editorial foi ter contribuído com a estreia literária de Mário Medeiros. Já veterano nas ciências sociais, Mário mandou um conto para a Lavoura e sua publicação acabou sendo o estopim para que reunisse outras histórias neste belíssimo Gosto de amora. Um dia lhe pediram “escreva sobre nós” e Mário entregou uma das mais sensíveis obras literárias que tratam da juventude negra, suas angústias e desejos.
18) Emilio Fraia – Sebastopol (Alfaguara – 2018)
Há sempre alguma coisa estranha acontecendo nos três contos de Sebastopol. São narrativas que ocorrem em locações específicas, mas suas consequências se espalham pelo mundo todo. Seus personagens, um tanto paranoicos, sempre estão na iminência de descobrir algo que mudará para sempre a forma de (se) ver (n)o mundo.
19) Léo Tavares – Ruibarbo do deserto (Patuá – 2019)
Os contos de Ruibarbo do deserto são coesos e econômicos e Léo Tavares manipula com competência o não-dito, o que cai muito bem em um universo repleto tabus e interditos, povoado por personagens de alguma forma à margem de algo. As narrativas são melancólicas e quase sempre se voltam ao passado dos personagens, como se ao presente fosse apenas reservada a serventia de palco para um acerto de contas.
20) Antonio Carlos Viana – Jeito de matar lagartas (Companhia das Letras – 2009)
Antonio Carlos Viana foi um dos nossos maiores contistas e é uma pena que seja tão pouco lido, mesmo entre nós. Em seu último livro, reúne personagens tão verossímeis e complexos que a gente corre o risco de cruzar com eles na fila do mercado ou visitando um apartamento para alugar. Há muita maldade, solidão, sujeira e sexo nesses contos escritos com a tranquilidade de quem já se acostumou com tudo e ainda assim se surpreende. Uma pena que tenha morrido no auge. Ficamos todos, autores e entusiastas das formas breves, um pouco órfãos.
Passando a régua
Entre as coletâneas de contos mencionadas na lista da Folha, duas eu não li, uma eu acho fraca e três eu curto bastante. Dos três livros de que gosto, tive a oportunidade de me manifestar publicamente sobre dois. Eis os registros:
O primeiro é Um exu em Nova York, da Cidinha da Silva, sobre o qual conversei com a Gabriela Mayer e a Maitê Freitas, no podcast Põe na Estante.
O segundo é Contos Negreiros, do Marcelino Freire, debatido com o próprio autor e com a escritora Jarid Arraes, na Flip de 2019. Além de discutir o livro do Marcelino, nos deixamos levar pelo Redemoinho em dia quente, da Jarid, e refletimos sobre a linguagem criando mundos e mundos criando linguagens. Infelizmente, os únicos registros desse encontro, até onde sei, são fotográficos.
esse beco e a lábia vão me levar à falência :))
ótimas inficações!
Ô coisa boa demais! E essa foto nossa? Lindeza de lembrança. Amo muito esse nosso papo.