Fascínio tenho eu por listas tolas, cantaria João Bosco em uma realidade alternativa em que eu tomasse o lugar de Aldir Blanc para compor os versos iniciais de Miss Suéter. Caem as falsas louras, entram as listas tolas, porque cada um sabe a obsessão que tem. Listas sempre foram o meu fraco. E aqui falo de listas em um sentido amplo, podendo abarcar coleções, compilações, reuniões, obras divididas em fascículos, álbuns de figurinhas e o que mais tiver como objetivo o imperativo de completar aos poucos.
Quando eu era moleque, no verso das embalagens dos bonequinhos vendidos nos bazares, havia sempre imagens das equipes completas acompanhadas de uma palavra de ordem como “colecione todos” ou “complete a coleção”, o que quase nunca era possível – os colegas com mais grana tinham todos os Power Rangers originais que viravam a cabeça; os meus vinham da feira e eram, cada um, de um tamanho, mas eu adorava do mesmo jeito. Até hoje guardo em alguma gaveta na casa dos meus pais o álbum completo dos Mamonas Assassinas e sinto um leve incômodo quando lembro que faltaram poucos fascículos para eu completar a Coleção Tesouros da Terra – Minerais e Pedras Preciosas (a coleção incompleta está no canto de um maleiro).
Os ecos da minha versão mini encontram guarida no Lucas de mais de 35 anos, pra quem comer bem não é só um prazer eventual, e sim um traço da personalidade, a ponto de ficar obcecado com algumas listas – sérias – de restaurantes para conhecer e tem como um dos objetivos de vida gabaritar o Guia da Culinária Ogra do André Barcinski. Eu levo tão a sério esse papo de completar uma série ou gabaritar uma lista que, sem brincadeira, preciso pensar uma dezena de vezes antes de começar um hobby que envolva colecionismo apenas porque sei que serei assombrado pela ideia de não ter todos os fragmentos, como se um quebra-cabeças com peças faltando me encarasse em cima da mesa da sala de jantar e eu só pudesse voltar a fazer refeições direito quando terminasse de montá-lo.
A literatura apareceu na minha vida quando eu já estava confortável com a ideia de que não me dedicaria à filatelia – afinal, jamais teria todos os selos de todos os países do mundo. Muito antes de ler Borges e de receber e-mails do escritório que representa no Brasil a Library of Congress a cada livro que publiquei ou editei, a imagem de uma biblioteca que contivesse todos os livros do mundo não parecia algo realizável e, portanto, ter a minha própria coleção de livros felizmente não esbarraria no obstáculo da incompletude paralisante. Foi assim que comecei a me cercar de lombadas e percebi que era esse o ambiente em que me sentia mais confortável. Eu sequer precisaria ler todos os volumes, bastando que estivessem ao alcance de um esticar de braços nas pontas dos pés em cima de um banquinho. Há livros para serem lidos e relidos, outros para serem consultados. Outros tantos formam uma espécie de rede de segurança para tornar menos perigoso o salto de uma obra à outra, ainda que hoje eu seja um trapezista um pouco mais experiente.
Bibliotecas estão sempre em construção, nunca completas. Há um livro ótimo, lançado no Brasil há pouco mais de um ano, que trata também disso. São inesgotáveis as falas de apaixonados por livros, como Italo Calvino, Piaget e Umberto Eco, mas aqui gostaria de começar a contar sobre uma empreitada que reuniu meu fascínio por listas (e por completá-las) e meu amor pelos livros.
Em uma época que parece mais distante do que deveria, as redes sociais ainda eram um espaço de franca troca de ideias. Eu era um adolescente presunçoso na era de ouro dos blogs, mas cheguei a frequentar fóruns e peguei o nascimento, o auge e o declínio do Império do Orkut, uma rede social que morreu justamente quando deixou de se organizar em torno das comunidades e escolheu focar na lógica das páginas pessoais e da timeline à Facebook. O problema dessa alteração, na minha análise de boteco, passa por transformar o que era o uso ativo de uma ferramenta ótima (era necessário abrir o site, logar, procurar por conta própria a comunidade que você queria fuçar, abrir o fórum, clicar no tópico e participar da discussão) no que temos hoje, que é o uso absolutamente passivo da rede, nos tornando reféns dos algoritmos e tributários do doomscrolling.
Claro que existia baixaria, xingamento, trollagem, mas as comunidades bem moderadas resolviam esses problemas com alguma tranquilidade. Sem contar que os próprios membros interessados em manter o nível faziam uma espécie de controle interno do ambiente e alguns participantes mais exaltados acabavam fazendo parte de uma espécie de folclore, sem maiores danos. Se você não acompanhou essa época ou tem alguma saudade, vale dar uma chance ao Reddit, que mantém fóruns específicos interessantes. O maior problema de lá é o anonimato. Não é absoluto como nos chans da vida, mas digamos que é mais fácil – ou quero me enganar que seja – defender violações aos direitos humanos usando como avatar algum personagem de mangá do que sendo a metade de um perfil de casal Má & Rê forever.
Pois bem. Esse episódio se passou no final da primeira década de 2000, em uma comunidade sobre futebol em que fiz muitos amigos que acompanho até hoje. As comunidades tinham temas, mas os membros acabavam se conhecendo, compartilhando gostos e trocando ideias sobre qualquer assunto. Não era raro debater o jeito certo de assar uma costela em uma comunidade sobre Guimarães Rosa ou discutir a independência de Kosovo no fórum lusófono do Pink Floyd. Eram as famosas discussões com o selo OFF (de off-topic), para designar que não pertenciam à alçada original da comunidade. O OFF daquela tarde de um ano que acredito ser 2009 foi criado por um então estudante de Letras da UFSCar que, ameaçado de jubilamento no nono ano, estava menos afim de completar os créditos faltantes do que de conversar sobre a lista da Folha dos 100 maiores romances do século XX.
Eu, que a essa altura já era conhecido nas minhas turmas como o cara que curtia literatura, fiquei com o ego ferido ao perceber que mal tinha lido 10% da lista. Além do orgulho machucado, me angustiei ao perceber que não conhecia boa parte dos títulos e que muito menos os tinha ao alcance das mãos. Só tinha um jeito de sair do fundo do poço e foi aí que o Lucas que colecionava fascículos de banca com o Lucas que estava começando uma biblioteca se conheceram com um propósito em comum: gabaritar a lista da Folha.
Bom, o resto da história de como eu construí uma biblioteca tendo como um dos pilares o romance ocidental do século XX percorrendo São Paulo afora atrás de exemplares raros ou esgotados eu conto eventualmente em outro texto, porque este aqui ficaria longo demais e às vezes tenho que entender que as minhas obsessões cruas são interessantes apenas para mim mesmo.
Como disse no primeiro texto deste espaço, há ideias que eu persigo e que me perseguem ao mesmo tempo. É nesse paradoxo que entendo estar o campo fértil da literatura. Faz um tempo que gostaria de escrever um guia de sebos de São Paulo, mas a rapidez com que parte dos meus endereços favoritos foi de arrasta se tornou incompatível com a dinâmica da cidade me deixou muito chateado e fugi do assunto. Uma hora eu sento e tento bolar algo entre a história de como esses sebos eram, exaltar os que ainda são e contar um pouco sobre onde encontrei os livros daquela lista de um jeito que não interesse só a mim.
achei que era só eu louca pelos fascículos dos tesouros e das pedrinhas que vinham junto - as únicas que pude comprar estão comigo até hoje (isso tem 30 anos); também tenho uma obsessão por listas, preciso de cuidado pra não viciar, nesse caso a minha displicência ajuda. do contrário estaria lambendo poste já.