Eu sou um homem de poucos princípios. Um deles é não dar chance pra nenhum restaurante que tenha algum funcionário na frente me convidando pra entrar. Outro é só escrever sobre algo que me ocorre depois de ficar obcecado por isso. Eu sei, isso parece levar a um processo lento, afinal não sou sujeito de chamar qualquer honey baby de obsessão. Mas aos poucos as neuroses e compulsões se confundem e, de repente, estou escrevendo sobre um episódio de dois anos atrás enquanto tento vender um original sobre uma ideia fixa do meio da pandemia, o meu livro mais recente talvez trate de algo que persigo há décadas ao mesmo tempo em que estou gerando uma nova fixação. E tem as de sempre.
Mês passado marcou dez anos da minha estreia literária solo, um livro de que não gosto mais, que comecei a escrever alguns anos antes e que se encerra com um conto sobre uma obsessão que me acompanha desde menino: a Boca do Lixo. O texto é ruim, não tenho dúvida, mas o que importa aqui é a ideia, que surgiu quando, atrás de pechinchas de eletrônicos, frequentava a Santa Ifigênia com meu pai nas últimas manhãs de sábado do século XX. Demorei pelo menos 15 anos para que a visse impressa num livro e o resultado nem importa tanto diante do exorcismo bem realizado.
Nem sempre exagero, que fique claro. Se é verdade que há seis anos penso diariamente na mulher que, numa farmácia, me pediu para ajudá-la a comprar cotonetes transparentes sem que eu ainda tenha descoberto o formato que essa história me pede, só demorou alguns meses para eu começar a escrever neste Beco do Propósito, nome que antecede os temas tratados no espaço. Afinal, se tem algo em que aprendi a acreditar com a literatura é no poder da nomeação.
A essa altura acho que posso falar de como cheguei ao título. Uma vez por ano, a bolha da qual faço parte há dez anos – e da qual fazem parte meus melhores amigos e a maioria dos meus leitores, inclusive daqui – se reúne durante 5 dias em Paraty, um cenário lindíssimo para uma festa cheia de contradições. Gosto de brincar que a Flip se parece com os episódios de Acapulco do Chaves, quando os mesmos personagens interagem da mesma forma, com as mesmas piadas e os mesmos jargões, mas com roupa de férias. Dependendo das suas pretensões, é importante pra caramba estar lá e é possível, com jeito, aproveitar Paraty, os eventos oficiais, os paralelos, as festas e os encontros. Mas é exaustivo. Não passei por nenhuma Flip sem me prometer que seria a última – geralmente a promessa acontece na noite de sábado, quando a luz já piscou nove vezes, a pousada está sem água há sete horas, a fila para ver a Conceição Evaristo em horário nobre dá volta no quarteirão, miragens com a minha cama passam a ser mais frequentes que as mesas com participação do Christian Dunker e só é possível jantar em restaurantes com funcionários na frente te convidando pra olhar o cardápio.
Então chega o domingo de manhã da Flip com um misto de alívio, despedida e preguiça das horas de estrada. O carro da minha companheira ficou no quintal de uma moradora durante a estadia e, enquanto espero por ela equilibrando malas, sacolas com brindes, uma ecobag da Travessa cheia de livros, banners do meu lançamento, um tanto perdido a respeito dos próximos passos na minha trajetória artística, olho pra cima e vejo uma plaquinha de rua com um nome singelo: Beco do Propósito.
Outra coisa que aprendi com a literatura, sobretudo com a obsessão por Raduan Nassar, é assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis. Jamais questionar os desígnios insondáveis, apenas aceitá-los. Eu nunca tinha ido para aquela franja do Centro Histórico de Paraty e justamente quando me perguntava o que seria de mim nos próximos dez anos nesse métier, a cidade me respondeu.
Em Paraty, os nomes inocentes das ruas – rua da Cadeia, da Aurora, do Fogo, da Matriz, Direita etc. – vêm sendo substituídos por nomes de Doutores Fulano de Tal. Não sei quanto tempo o simpático logradouro sustenta a nomenclatura atual, espero que por bastante.
Becos x encruzilhadas
Anoto “Beco do Propósito” no caderninho que ganhei por mediar uma mesa e a ideia leva alguns segundos para se materializar. Escrevo que só tem sentido na literatura aquilo que é fruto de obsessões. Defino que um beco é o oposto de uma encruzilhada, já que esta oferece várias opções de caminho e aquele é um ponto de chegada sem saída. Reflito sobre onde cheguei e de onde não saio: a literatura. Questiono o meu propósito: a literatura. Se beco é literatura e propósito é literatura, beco é propósito e propósito é beco, estamos falando do beco do beco ou do propósito do propósito e acho que bebi demais, mas sigo no caderninho. A imagem que beco me invoca é de estar de costas para um muro, encurralado, além do qual não consigo seguir, mas de onde enxergo todo o caminho percorrido. Voltar não é uma opção. Resta aprender a atravessar paredes. Escrever é um pouco isso.
Logo depois que voltei de Paraty, uma imagem passou a se repetir, com sutis diferenças, nos meus sonhos: eu, do alto de um prédio, provavelmente encrustado no Vale do Anhangabaú, vejo, enquadrada por uma janela, a dinâmica de uma cidade que talvez não exista mais. São pessoas sempre com pressa, caminhando para embarcar nos ônibus, entrar nos edifícios, dar sinal para um táxi. Engrenagens azeitadas de um relógio que funciona bem. O mecanismo que pulsa no coração de uma metrópole inimaginada por Fritz Lang, mas encrustada no Século XX, que não sonhava com celulares, aplicativos, bags de entregadores, drones e impressoras 3-D. Olho para essas pessoas e penso que em dois minutos de observação vejo mais gente que as que moram em uma cidade do interior, que o público flutuante de leitores em Paraty.
Faz dois anos que me mudei do Centro de São Paulo para o bairro de Pinheiros. As primeiras vezes que retornei não foram fáceis. É difícil só estar em um lugar a que antes se pertenceu. Nos últimos meses, a falta que o Centro me faz passou a gritar. Não vou parafrasear Saramago e dizer que foi preciso sair do Centro para enxergar o Centro, ops, já fiz. Meu analista acha que “centro” talvez não se refira exatamente ao coração da cidade, mas prometo que não vou fazer da literatura autoanálise.
Só sei que desde o retorno de Paraty eu quase só consigo escrever sobre a minha relação com São Paulo, especificamente com o Centro, um vínculo que não tem começo, meio ou fim – uma espécie de beco. Uma relação mediada pela literatura, é claro, minha grande obsessão.
Não sabia exatamente quando começaria, mas o Zuckerberg deu uma força tornando as redes da meta mais insalubres ainda. Eu já usava o Instagram para falar de livros, agora o plano é seguir por aqui falando da cidade e das minhas leituras – de livros, filmes, peças, exposições, discos – enquanto durar o fôlego de novo-velho blogueiro. Até quando não for sobre isso que estiver escrevendo.
Bem-vindos ao Beco do Propósito.
PS. Quando migrei para o substack, a grande pracinha do momento, rolou a importação dos assinantes da minha antiga newsletter da plataforma anterior – que por sua vez puxava periodicamente os contatos do meu e-mail independentemente de comando – de uma forma semiautomática. Pode ser que você, leitor, tenha entrado sem querer nesse bolo. Se você quiser seguir me lendo, vai ser uma honra. Se não fizer sentido, no hard feelings e desculpe a invasão.
coisa mais linda. me chama pra beber em pinheiros e a gente mata um pouco a saudade do centro.
Me mudei do centro para a Vila Prudente em 2018, e até hoje não me acostumei com a ideia de não encontrar uma padaria aberta depois das 21h.