Quando soube da existência do sapato com sola pneu de avião, a coisa me pareceu muito útil. Afinal, tinha gasto a do meu tênis percorrendo toda a avenida Paulista e descendo a rua da Consolação entregando currículos em toda portinha que se parecesse com uma instituição de ensino. No cruzamento com a Cesário Mota Júnior, num nível abaixo da calçada, uma banca meio improvisada guardava uma sapataria, sem letreiro nem nada que indicasse sua regularidade. Um desavisado que passasse por lá fora do horário de expediente só saberia o ramo do comércio por conta de duas faixas penduradas em que se lia: Chegou Botas e Sapatos p/ Motoboy e Segurança e Chegou o Sapato com Sola Pneu de Avião.
Eu já falei em outro texto que não é nada saudável criar expectativas que uma cidade como São Paulo permaneça imutável justamente porque seria contra a sua própria natureza. No mesmo texto, falei sobre como apostar nas pilastras de sustentação erradas poderia ser fatal caso o teto despencasse. Bom, acho que não fui tão trágico, mas a ideia é essa. Retomo esse ponto quando penso em algumas marcas na cidade – como a placa anunciando o sapato com sola pneu de avião – com as quais tive uma conexão que me ajudava a me localizar não só geograficamente, como também temporal e afetivamente na cidade. (Em uma época em que a palavra afeto tem sido tão esgarçada, gostaria de tentar resgatar acepções mais tradicionais, que remetem às pulsões físicas e psíquicas que determinadas ligações geram – e São Paulo realmente me faz pulsar).

Umas noites atrás sonhei com a Natália, a amiga que me acompanhou nessa empreitada dos currículos e caiu na gargalhada quando leu o anúncio da sola pneu de avião. Eram quase 19h, o trânsito da Consolação e da Maria Antônia já estava enroscado e nossos estômagos de monstrinhos que acabaram de atingir a maioridade gritavam pedindo sustância. Como também precisávamos esperar o tráfego diminuir pra voltar pra casa com alguma decência, lembramos que estávamos perto do lendário Bar do Estadão, do qual nós, dois paulistanos que passaram a adolescência numa cidade sem McDonalds, só tínhamos ouvido falar. Dividimos o sanduíche de pernil mais simples, que era o que eu conseguia pagar até algum retorno das escolas. Do balcão, vi que uma placa em papel sulfite plastificado anunciava “Novidade: Beirute Xadrez”.
Eu não tinha como saber que uns cinco anos depois me mudaria para o Centro e que os três endereços que tive por lá estavam bem perto da lanchonete – incluindo o Edifício Planalto na Maria Paula e um prédio do Franz Hepp na São Luís, literalmente as ruas que são a continuação do viaduto em que está o Bar do Estadão, do qual passei a ser frequentador assíduo. Sempre fui adepto do frango à milanesa com arroz à grega que o Jurandir caprichava mais quando via minha cara de esfomeado, no balcão de dentro. São incontáveis os domingos em que almocei tarde para a refeição também servir de janta. Assim, eu economizava uns caraminguás e de quebra acompanhava o segundo tempo das partidas de futebol numa época sem internet ou TV em casa. Adorava o segredo malguardado de que a feijoada, tradicionalmente servida em São Paulo às quartas e aos sábados, já podia ser degustada nas noites de terça e de sexta-feira. Hoje minha tradição é comer um pão de queijo recheado com pernil e tomar um suco de beterraba antes de cada turno das eleições, voto lá perto. E, durante quase duas décadas, eu me sentia em casa sabendo que o anúncio do Beirute Xadrez continuava lá, configurando uma das novidades mais duradouras da cidade.
Uma experiência bem paulistana – ou uma experiência paradigmática na minha vivência enquanto paulistano – é reclamar do frio e usar como argumento de autoridade a temperatura marcada no termômetro do Itaú, no topo do Conjunto Nacional. Não sei se este texto sobreviverá ao tempo, mas, caso chegue às gerações futuras, é importante contextualizar que nos meses de junho e julho, até meados das primeiras décadas do século XXI, existia uma coisa chamada inverno e, em São Paulo, as temperaturas podiam chegar apenas a um dígito. Geralmente isso acontecia em duas semanas de julho, quando eu tirava o sobretudo do armário e dava pra sair de cachecol na rua sem parecer pedante. Nesses dias mais gelados, se alguém viesse da avenida Paulista, inevitavelmente informaria a temperatura marcada no termômetro do Itaú. Isso dura até hoje, 2025, quando publico este texto pela primeira vez. O problema, tirando o colapso do Planeta, é que o termômetro no topo do Conjunto Nacional não tem mais relação com o Itaú há mais de 15 anos – em 2006 foi promulgada uma lei que regularia a paisagem urbana e determinaria, nos anos seguintes, a retirada de logomarcas de locais mais chamativos, como as coberturas de edifícios.
Não sou exatamente contra a Lei Cidade Limpa, veja bem, mas o combate à poluição visual caracterizado pelo fim dos outdoors e pela preservação de determinadas fachadas de valor histórico e arquitetônico não precisava atropelar quaisquer manifestações de marcas já incorporadas à paisagem urbana de São Paulo – até porque o capitalismo é criativo e o que mais tem é Smartfit, Méqui e Igreja Neopetencostal dando seus pulos, como a solução de colocar, na parte interna dos estabelecimentos, luminosos que não passam de letreiros de fachada maiores que os permitidos pela lei.
Algumas propagandas, por outro lado, transcendem a função de anúncio e se estabelecem como documento histórico. O incêndio e queda do edifício Wilton Paes de Almeida, por exemplo, revelou uma elegante e engraçada placa publicitária dos anos 50 da cerveja Caracu, no prédio vizinho, que também leva o nome da bebida. O síndico inimigo da felicidade, todavia, tratou de pintar o painel de verde assim que teve oportunidade. Além do relógio do Itaú, lembro dos letreiros da Aiwa e da Bosh no encontro da Consolação com a Ipiranga, do neon das panelas de pressão Clock no calçadão do centro histórico e dos anúncios vizinhos da Martini e da General Electric na Maria Paula. Voltando mais um pouco no tempo, uma icônica estrela da Mercedes-Benz adornava o topo do histórico Mendes Caldeira, implodido para a construção da estação Sé do metrô. Nada disso poderia ser confundido com as enormes placas de publicidade na Marginal Pinheiros, corretamente retiradas.
Há várias fotos antigas da São João com seus luminosos e não devíamos nada para a Broadway ou para a Times Square, que os turistas paulistanos adoram. Para comparar com a metrópole vizinha, Buenos Aires, a avenida Corrientes parece dia mesmo quando noite e todos sobrevivem. Será que só em São Paulo estamos certos? Será que Gilberto Kassab, o prefeito do projeto e eminência parda do atual governador, é um gênio incompreendido? E quais as alternativas criativas que tornam a cidade menos cinza? As projeções horrorosas na fachada do ralador prédio da FIESP? Os grafites e murais VERACIDADE ou EU SABIA QUE VOCÊ EXISTIA? Eu sei que é duro admitir, mas os publicitários de grandes marcas têm um senso estético um pouco mais apurado que isso. Ou vai dizer que você imagina uma letra de música que mencione o retrato do Niemeyer by Kobra, o Romero Britto dos muralistas? O relógio do Itaú, ao contrário, foi belamente cantado pelo carioca Dick Farney e pelo santista Passoca.
Mas nem toda intervenção urbana fora da publicidade precisa cair no tilelê ou no kobrismo cultural. Voltemos à rua da Consolação e às solas desgastadas do meu tênis. Não é que a entrega dos currículos deu meio certo? Alguns dias depois me telefonaram de um cursinho para concursos públicos que não existe mais, quase vizinho do posto dos bombeiros. Por algum tempo eu dei aulas noturnas de História para alunos entediados que queriam ser policiais militares ou cadetes, os concursos que à época cobravam a disciplina que eu estudava. Ganhava mal, tinha um horário de corno, mas havia uma satisfação particular por saber que, sempre que descesse a Consolação, eu veria o mural de azulejos da escola estadual Marina Cintra, com o Padre Anchieta catequizando dois curumins, manchado de tinta vermelha. Não tem jeito, sempre que o mural for limpo, poucos dias depois alguém intervirá para lembrar a cidade que todo higienismo é acompanhado de derramamento de sangue.
Enquanto persigo São Paulo – não é amor, é identificação absoluta –, é a sujeira que mais me interessa.
O relógio do Itaú saiu do topo do Conjunto Nacional e reapareceu na home page do UOL, me ajudando a bater a meta de vendas por dois anos. Enquanto uns choram outros vendem lenços, como diria Nizan Guanaes, aliás autor da ideia do relógio (no UOL não na Paulista). Parabéns pelo texto 👏
Que maravilha! Como faltam cronistas assim no Brasil. Ainda bem que inventaram este tal de substack! Delícia de texto, e quem circula por esse Centro estropiado entende cada palavra!