A primeira vez que ouvi a expressão “boca do lixo” ela foi proferida com raiva pela minha avó. Era o dia do casamento da minha tia, na igreja de Santa Teresinha, zona norte, bem perto de onde morávamos. A cerimônia foi marcada para o início da noite de uma sexta-feira 13 de um janeiro tão chuvoso como todos os da minha infância. Era 1995, mas preciso olhar o calendário para confirmar em qual daqueles anos, que parecem formar um bloco só entre o acidente do Senna e a queda do avião dos Mamonas Assassinas, houve uma Sexta-feira 13 em janeiro. Os detalhes ajudam a me localizar, mas basta que fechemos os olhos e imaginemos os paletós com lapelas enormes e os vestidos sem manga, as vagas em volta da da igreja repletas de Fuscas e carros quadrados da Volks e da Chevrolet e, se nos concentrarmos bem, dá pra ouvir Marrom Bombom tocando ao fundo. Não houve festa e os noivos receberam os cumprimentos na saída da igreja. Tudo nos conformes para um casamento de classe média baixa no subúrbio.
Mas, como era de costume, meu avô quis aparecer surpreender e deu aos noivos um presente extravagante: a noite de núpcias em uma suíte caríssima no antigo hotel Hilton – que hoje abriga gabinetes de desembargadores do Tribunal de Justiça – antes de partirem para a lua de mel em Porto Seguro. Como minha família nunca teve muita noção de espaço pessoal, seguimos em comitiva para o hotel para conhecer o quarto, sim, o quarto, em que meus tios passariam a primeira noite de casados. Os homens de terno, as mulheres de longo e eu com a roupinha de pajem, sapato apertado, suspensório angustiante e uma camisa que dava coceira. Do banco traseiro do Opala do meu avô, eu percebi que minha avó, entre resmungos e murmúrios, estava bem incomodada. O motivo: o Hilton fica(va) na avenida Ipiranga, quase na Consolação, e ela odiava o Centro. E foi aí que ela usou a expressão “boca do lixo” como sinônimo de zona do meretrício pobre, em contraposição ao que seria a zona do meretrício rica, a “boca do luxo”.
Eu tinha seis anos e era a única criança da família. Estava acostumado a escutar a conversa dos adultos e a absorver tudo. Minha avó era a minha principal interlocutora e me explicava sem muito filtro tudo que eu perguntasse. Então podemos dizer que, no esquenta da lua de mel da minha tia, eu aprendi o que era prostituição e tive a primeira noção de que o Centro de São Paulo era o seu território. Quando a família toda chegou no Hilton, eu lembro de não desgrudar da mão da minha avó ao mesmo tempo que meus olhares percorriam o saguão tentando descobrir, sem sucesso, onde estariam as prostitutas.
Nos anos seguintes, até me mudar para o interior, segui tendo dois tipos excursões para o Centro: meu pai me levava para ver eletrônicos na Santa Efigênia aos sábados de manhã e meu avô me fazia acompanhá-lo em uma via sacra de rolos entre financeiras, bancos e escritórios de advocacia nos calçadões entre a Sé e a República em dias úteis das minhas férias. Em ambas as modalidades, morria de medo e curiosidade por aquelas mulheres, que acabei nunca vendo. O fascínio, afinal, era por quase entidades, por uma ideia mítica, que ganhou contornos reais graças à intensidade com que minha avó falava delas. Meu avô, ao perceber o seu desconforto, passava a insinuar que me levaria a prostíbulos, o que a deixava mais inconformada e fula da vida. É horrível olhar para trás e entender que fazia parte do cotidiano da minha avó um incômodo permanente com o seu marido frequentando uma parte da cidade, que se agravava quando levava seu neto de menos de dez anos.

Uma das obsessões que me norteiam – e refletem na minha produção literária – é a memória da família. Eu entrevistei meus avós maternos algumas vezes e existe um ponto de convergência quando se recordam da São Paulo da juventude: as ruas Itaboca e Aimorés, de apenas um quarteirão cada uma, coladas à linha do trem que até hoje faz as vezes de limite entre o Bom Retiro e Campos Elíseos. A Aimorés segue com esse nome e a Itaboca foi rebatizada como Professor Cesare Lombroso – sim, aquele – e compunham a primeira zona do meretrício de São Paulo. Foi lá que meu avô teve sua iniciação sexual, levado por um colega maior de idade. Já na família da minha avó a menção às ruas, sobretudo à Itaboca, era um tabu. Nas literais palavras dela, “Itaboca” era o pior palavrão que tinha. Boa parte da zona do meretrício do Bom Retiro acabou se deslocando para a região do Arouche, então nobre, e da República, nas ruas Rego Freitas, Bento Freitas e Major Sertório, no sentido de Higienópolis, e adquiriu a fama de Boca do Luxo. Em contraste, a parte mais pobre foi para a região entre o jardim da Luz e a Santa Ifigênia, que alguns anos depois se tornaria o polo cinematográfico que se apropriaria da alcunha Boca do Lixo, sobretudo na esquina da rua do Triunfo com a rua Vitória.
Quando eu tento cavoucar e descobrir como essa obsessão surgiu, penso na minha avó contando as histórias da infância, com direito a madrasta má e venda de criança. É também o meu primeiro contato íntimo com a literatura. Sim, quando tento remontar o quebra-cabeça dos meus primeiros anos, as histórias que a minha avó – que nada mais eram do que literatura oral – ocupam um lugar diferente dos demais. Nessas histórias, os bairros do Pari, do Bom Retiro, do Brás, da Liberdade e, claro, o Centro são paisagens recorrentes e funcionavam como uma espécie de Nárnia, Terra-Média, Hogwarts, mas com a vantagem de estarem à distância de uma esticada de carro. Um passeio na Liberdade era mesmo como ir para o pequeno Japão das histórias que eu ouvia. Ao Pari íamos para comprar enfeites de festa e aproveitávamos a viagem para visitar os personagens parentes da minha avó – o bairro tinha cheiro de doce por conta da fábrica da Tostines, o que tornava ainda mais viva a ideia de que estávamos em um local que nada mais era do que cenário das minhas histórias favoritas.
Voltemos ao Centro. Antes de conhecer o Alcântara Machado e o João Antônio, o Centro já tinha sido pintado para mim como local perigoso, de tudo que era tranqueira, dos malacos, jogadores de cartas e bilhar, malandros e vagabundos nas piores e mais moralistas acepções, e, claro das prostitutas. Na minha percepção infantil, era como ir ao mundo do Bowser em Super Mario Bros. 3, escuro, mas sedutor. Uma coisa que eu adorava nas buscas por lojas de eletrônicos com meu pai é que as ruas tinham nome de mulher. Além da Ifigênia, a santa, tínhamos a Aurora e a Vitória. Como estávamos em um cenário, imaginava que Ifigênia era a prostituta mais velha e que suas filhas eram Aurora e Vitória. Eu mantive essa ideia por décadas até que escrevi um conto medíocre que encerra meu primeiro livro e uma peça de teatro burocrática baseada nesse texto. O problema mais grave, vejo hoje, é que tinha esquecido os olhos de fascinação do Luquinhas e me voltei para o Centro com lentes sociológicas e não literárias.
No conto “A rua dos crocodilos”, Bruno Schulz imagina um velho mapa de Drohobycz, sua cidade natal e mítico cenário central de sua literatura. O espécime cartográfico estaria escondido em uma gaveta do seu pai e, ao ser aberto, ocuparia toda a parede do cômodo. Marcado por elementos barrocos, o plano só perdia sua característica ornamental nas imediações da rua dos Crocodilos, destacada como as regiões inabitadas ou desconhecidas das antigas cartas náuticas. A partir daí, o narrador descreve o bairro da rua dos Crocodilos, imaginando livrarias sempiternas, alfaiates e confecções de má qualidade, bondes que não respeitam os pontos e os horários de partida, golpistas, agiotas e demais elementos que compõem a escória da cidade e, claro, as mulheres de má fama, que dão as ordens no local. Apesar de ser um conto publicado na meia-idade, Schulz recorre aos olhos de um garoto que explora os esconderijos do pai para lidar com os tabus que o fascinam. Maria Negroni chamaria esse movimento de amadurecimento rumo à infância e me parece um recurso literário sofisticadíssimo, que joga com a ideia de que é na infância que vemos as coisas pela primeira e última vezes.
Talvez seja isso que tenha faltado ao meu conto – e à sua versão dramatúrgica – e agora percebo. Como disse no texto da semana passada, me parece muito mais interessante olhar para a Cidade, o Centro, com os olhos do garoto que se fascina com a ideia de uma região povoada e controlada por prostitutas que o raptariam assim que seu pai soltasse sua mão ou seu avô virasse de costas, do que o olhar um tanto condescendente que transplanta o suposto declínio da região para a derrocada de uma família de prostitutas. O caminho literariamente satisfatório parece apontar sempre para infância. Sigamos essa busca.
Quando eu tinha uns três ou quatro anos, ganhei uma roupa nova dos meus pais, e minha irmã, que é quatro anos mais velha, me falou que eu tava parecendo uma prostituta. Eu não sabia o que a palavra queria dizer, mas achei linda de morrer (como toda palavra com mais de três sílabas). Acho que até hoje nunca recebi um elogio que me deixasse tão maravilhada.
Olha só, estudei no Salesiano, fiz a primeira comunhão na Santa Teresinha, casei no Hilton e moro pelo centro. A única diferença é que minha vó, do Tucuruvi, adorava me levar ao centro