Josué é o único funcionário da Junta de Serviço Militar de Águas da Prata. O órgão responsável por questões burocráticas do alistamento obrigatório, apesar de vinculado ao Exército, não passa de uma salinha no fundo de um corredor da prefeitura com a tinta das paredes descascando. Na maioria dos dias, Josué não tem rigorosamente nenhuma tarefa, afinal, por ano, nem cem garotos atingem a maioridade na estância hidromineral a 238 quilômetros da capital. Talvez pelo marasmo modorrento típico das repartições públicas Josué até ache o pedido de Zé Eduardo extravagante, mas o acolhe sem pensar nas consequências. É o guardião dos carimbos com o selo oficial e a assinatura do tenente responsável pelo tiro de guerra de São João da Boavista, ao qual a JSM está vinculada. E qual seria o problema? Zé Eduardo foi seu colega de sala – e um dos alunos mais brilhantes a frequentar a Escola Estadual Professor Timotheo Silva – e parece sincero quando diz ter perdido o seu certificado de reservista – a dispensa por excesso de contingência é virtualmente automática nas pequenas comarcas. Josué garante que emitiria uma segunda via no mesmo dia, mas Zé Eduardo insiste que o amigo não precisa ter esse trabalho. Afinal, a culpa do extravio era sua e bastava lhe dar uma cédula em branco que ele próprio a preencheria seus dados na Olivetti portátil que usava para estudar.
No postinho do MTE o desafio é um pouco maior, mas Zé Eduardo se aproveita do prestígio como jovem promissor para engambelar Dorinha. Do prestígio e dos doces de abóbora que Dona Vitalina, sua mãe, faz como ninguém e cuja fama chega até Poços de Caldas, já em Minas Gerais. Com uma dúzia do quitute, Zé Eduardo propõe à responsável pelo preenchimento das carteiras de trabalho que lhe entregue a sua em branco. Dorinha faz jogo duro, não sabe muito bem se por deferência ao ofício ou para participar da dança proposta pelo rapazote. Porém Zé Eduardo, apesar de muito tímido, é bom do gogó e convence a burocrata de que está estudando caligrafia estilizada e acredita que, se pudesse preencher o documento com a sua técnica, se destacaria aos olhos de futuros empregadores de São Paulo, para onde estava se mudando nas próximas semanas para cursar Direito na opulenta faculdade do Largo de São Francisco.
O derradeiro documento é obtido no Ministério Público do Trabalho, onde Zé Eduardo trabalha desde adolescência. Iniciou a carreira como menor colaborador eventual e logo foi efetivado – a vida antes da Constituição de 1988 era mais simples. Como tem acesso avançado ao sistema, não tem dificuldade alguma para emitir uma nova carteira funcional. Dessa vez sequer precisa de um documento em branco e preenche no próprio computador da repartição o nome que passaria a usar a partir daquele dia: Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.

O trecho acima é uma peça de ficção, talvez seja bom avisar nesses tempos em que o absurdo arrebenta com um só chute a porta da realidade algumas vezes por dia. É uma tentativa de imaginar como o juiz aposentado José Eduardo Franco dos Reis obteve facilmente três documentos que, segundo o Ministério Público, deu início a uma farsa de mais de 45 anos. Ele enganou a mais tradicional faculdade de Direito do Brasil, ele enganou o maior tribunal do mundo em volume de processos, mas ele sucumbiu ao Poupatempo da Sé.
É difícil imaginar um episódio que represente mais o Brasil que um camarada que passa meio século usando um nome falso de lorde inglês e só é pego porque a burocracia estatal é uma das poucas atividades humanas que seguem sendo aprimoradas. E eu estou fascinado pela história.
A primeira vez que ouvi falar de Franco dos Reis, ou melhor, de Edward Albert, faz pouco mais de dez anos. Precisei consultar a lista dos magistrados do Tribunal de Justiça para ver quem ocupava determinada cadeira e me deparei com o nome pomposo. Achei curioso e fiz a primeira coisa que qualquer um da minha geração faria: dei um google na alcunha. O único resultado relevante era uma matéria da Folha de 1995 sobre descendentes de estrangeiros que passaram no concurso da magistratura em que Wickfield menciona ser neto de um juiz britânico, que foi citada nas primeiras reportagens desde que o assunto veio à tona.
Apesar de ter achado o nome exótico, o máximo que fiz a respeito foi sondar colegas do direito se já tinham ouvido falar do juiz de linhagem nobiliárquica. Ninguém sabia muito mais do que eu e o caso caiu no esquecimento. Grave erro. Teria adorado conhecer pessoalmente esse personagem, sobre quem muito tem sido especulado.
Em um grupo de WhatsApp – devidamente silenciado – com antigos alunos da Faculdade de Direito que participaram de um coletivo artístico, circularam prints com depoimentos apócrifos e fotos do magistrado em atividade. Entre os relatos, que podem conter o veneno inato à fofoca, há informações de que ele a) falava português com um leve sotaque e alegava fazer acompanhamento fonoaudiológico para perdê-lo; b) não usava o elevador privativo dos magistrados e se locomovia de metrô devido à educação britânica; c) contava histórias do vovô e da vovó na Inglaterra com detalhes vívidos; d) teria estudado violino com a filarmônica de Viena; e) dizia que assim que se aposentasse voltaria “para casa”; e f) interrompia o expediente às 17h para chá das cinco. Mas o meu boato favorito é o que sugere que ele teria tirado férias na mesma época do casamento do Príncipe William com Kate Middleton, dando a entender que os dois eventos se relacionavam.
Ao que parece, apesar das idiossincrasias, ele era um juiz de carreira discreta, gentil com funcionários e sem histórico de atitudes arbitrárias. Tampouco existe, até o momento, qualquer acusação de que tenha se aproveitado do nome inglês para obter vantagens indevidas, o que, sejamos sinceros, tornaria a história muito mais sem graça.
Mas quais as intenções de Franco (que não era) dos Reis ao adotar não só o nome como a persona de Wickfield? Não parece que a resposta está próxima de vir pelo próprio ator, afinal ao delegado ele apresentou a fantasiosa versão de que Edward seria seu irmão gêmeo, chegou a dar um endereço falso do “irmão” na Inglaterra, e picou a mula do apartamento em que morava na Vila Mariana três dias depois. O que nos resta é conjecturar – com uma ajudinha da crítica literária.
No clássico ensaio “A personagem do romance”, Antonio Candido defende que a nossa maior dificuldade na compreensão da personalidade do outro se relaciona com a tendência ao infinito que o conteúdo interno do indivíduo adquire, o que leva a um cenário em que o conhecimento dos seres que acessamos por meio de suas ações – e o romance literário seria o palco perfeito para tal – sempre será fragmentário.
Além disso, existe um entendimento mais ou menos pacífico na dramaturgia clássica de que o que leva um personagem a agir é a sua falha e que só haverá história digna de ser contada, uma trama relevante, se ela se relacionar de alguma forma com uma falha bem construída.
Com esses pressupostos, qual seria a falha de José Edward que acessamos a partir da análise dos fragmentos de vida a que tivemos acesso? Eu tenho minhas apostas e para isso precisamos voltar para a Estância Hidromineral de Águas da Prata, nos anos 60 e 70.
A descrição que atribuí às repartições públicas de Águas da Prata no primeiro trecho deste texto se deve à minha própria história como um garoto que passou oito anos, entre infância e adolescência, no interior do São Paulo – a metade deles em uma cidade menor que a Águas da Prata dos anos 80, quando a farsa de Franco dos Reis teria começado.
A experiência de passar os anos do adolescer em uma cidadezinha foi fundamental na minha vida, como imagino que tenha sido para o magistrado aposentado e como inegavelmente foi a Juan José Saer, um dos principais autores argentinos da segunda metade do século XX. Dele, cito dois trechos – uma nota autobiográfica mencionando viagens pelo interior da província de Santa Fé acompanhando o pai e uma carta enviada ao escritor Rafael Ielpi rememorando a juventude em Rosário:
Eso me obligó a viajar por todo el norte de la provincia. Cada uno de esos viajes era para mí una verdadera tortura; a veces duraban tres o cuatro semanas y cada partida era un desgarramiento. Sin embargo, después, en el recuerdo, de esos viajes me han quedado imágenes maravillosas. Aún hoy me sé quedar horas enteras mirando el mapa de la provincia, y a cada nombre de esos pueblos perdidos me vienen recuerdos intensos y luminosos. La costa, sobre todo, parece haberme marcado para siempre. De donde podemos deducir que nunca sabemos cuándo estamos en realidad viviendo lo esencial de nuestras vidas.
+
Esa primera temporada en Rosario, después que me rajaron de El Litoral, es el mejor período de mi vida. Todo el resto, en comparación, no es más que un sueño monótono.
Aquilo que vivemos na infância, quando vemos o mundo pela primeira vez, nos marca para sempre – o resto é trauma –, até aí nenhuma novidade. Mas defendo a ideia de que o impacto de uma infância no interior, em cidades e povoados isolados e que compõem por si só mundos à parte, é ainda mais marcante – Comala e Macondo estão aí para provar. Assim, aposto que, tal como a Analândia da minha infância, a Águas da Prata de Franco dos Reis também era um cenário misterioso, próprio do realismo mágico, propício a seres encantados e a histórias maravilhosas, em que a mínima alteração da rotina tem potencial para se tornar parte do folclore local. Para exemplificar, gosto sempre de lembrar um causo analandense. Quando me mudei para lá, em 98, contavam uma história ocorrida anos antes, não sei exatamente quantos, que consistia simplesmente na passagem de três japoneses pela cidade. A visita deve ter durado algumas horas de uma tarde, mas foi suficiente para movimentar as estruturas locais a ponto de cada habitante ter uma história sua ou de um conhecido com os pobres dos japoneses que se perderam e pegaram, por um acaso absurdo, a estrada de acesso à cidade.
Tudo isso ganha contornos ainda mais sensíveis se você tem propensão à literatura ou às artes em geral – José Eduardo Franco dos Reis, despido da persona de Edward Albert, se apresenta como artesão. As minhas primeiras ficções foram imaginadas em cidades pequenas e esse exercício, embora não se confunda com o ofício literário profissional de hoje, sugere que desde cedo eu já ansiava por outras lentes. Talvez seja o caso de Franco dos Reis, já que se imagina que a inspiração do nome adotado tenha sido a literatura, como vemos aqui, aqui e aqui.
Mas chega um momento definitivo a todos que descobrem o potencial de criar outros mundos. Nesse momento, tudo em volta se revela pequeno, insuficiente. Sim, eu sempre retorno para o período da minha vida em que via o mundo pela primeira vez – sobretudo quando todo o resto não passa de um sonho monótono –, mas um regresso físico e definitivo nunca é cogitado. Saer passou a maior parte da vida em Paris; eu, em São Paulo, assim como Franco dos Reis.
E o que resta a nós, adolescentes meio inadequados, sufocados pelos limites do único mundo que conhecemos, com facilidade na escola, inclinação artística e uma angústia que parece eterna? Cada um tem o seu caminho. O de Franco dos Reis foi uma performance que traz em partes iguais um pouco de loucura e um pouco de coragem.
Cada fragmento na construção de sua persona me comunica isso. Não é fácil enfrentar uma cidade-leviatã como São Paulo, muito menos caindo de paraquedas na conservadora Faculdade de Direito da USP, onde a importância de um sobrenome se escancara. Pior ainda quando você é um rapaz simplório, com traços caboclos e origem capiau. É esguio demais e os ternos prontos têm um caimento mal-ajambrado. Como bom matuto, Franco dos Reis deu seu jeito. Foi um cadinho extremo? Não se nega, mas respeito muito a construção do personagem, combinando caráter e traços sugestivos de modo tão absurdo – e comunicando tanto – que, em 45 anos, jamais levantou suspeitas.
James Wood, no capítulo dedicado ao estudo do personagem em “Como funciona a ficção”, acredita que um dos desafios ao bom ficcionista é saber como “engatar” o personagem, colocá-lo em movimento, para que suas contradições e fragmentos de personalidade adquiram um grau de convencimento do leitor mais próximo possível da realidade.
Nessa empreitada, José Eduardo Franco dos Reis foi mestre. Fiel ao seu personagem, nunca deixou de adicionar camadas de complexidade e verossimilhança mesmo com o passar dos anos. E fez isso justamente porque conhecia seu público e tinha plena consciência de que as questões que sua persona evocava ressoariam tão bem no Brasil dos bacharéis.
Sua criação, para usar conceitos de Antonio Candido no supracitado ensaio, unifica o fragmentário e organiza o contexto de forma muito competente, a ponto de eu ficar um tanto triste por ter que dar adeus a Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. Fechemos o livro, pois.
Ótima análise dessa história que só o Brasil (e a Améria Latina como um todo) conseguem produzir assim, fora dos livros, na vida de um José Eduardo que se torna Lanceot.
Ler a sua abordagem ficcional do episódio me fez pensar numa outra cena que (espero) não tenha acontecido:
O juiz Wickfield faz um pequeno jantar para colegas em seu apartamento suntuoso na Vila Mariana. Um dos convidados já vem há algum tempo com uma pulga atrás da orelha em relação ao anfitrião. Algo em seu sotaque, talvez, ou uma história do avô que não confere abriu a porta para deixar a suspeita entrar em sua mente. Em um momento de descontração (ou após uma ida ao banheiro), essa personagem vai ao cômodo onde fica a biblioteca de Wickfield. Essa pessoa sabe do gosto que o juiz possui pela literatura clássica inglesa e, leitor imparável, não resiste a uma olhadela naquelas estantes. Que segredos esse lorde guardará? Que tesouros trouxe de sua terra natal? Seus olhos passam pelas lombadas, seus dedos puxam um volume aqui, um volume ali, até que param sobre um livro de história. History of English Literature, de Edward Albert. Que coincidência, pensa, um Edward Albert, como Wickfield. A personagem pega o livro. Na folha de rosto, um nome assinado, José Eduardo. Nota páginas marcadas ao longo do livro. Abre em uma delas e vê um parágrafo sobre as crônicas arthurianas, onde Lancelot está sublinhado. Vai em outra página marcada e vê um parágrafo sobre Agnes Wickfield em David Copperfield. Na terceira página aberta, sobre Os Contos da Cantuária, uma figura aparece às suas costas. É o juiz Wickfield, e, apesar do sorriso, os dois sabem que o segredo foi revelado. E sabem, mesmo sem a ameaça feita, que apenas um dos três sairá com vida daquela biblioteca.
A melhor coisa que li hoje! Obrigada. Esse texto apaziguou meu coração de tantas formas… 🧡