Quando os DJs dos palcos menores já haviam desistido de entreter as três pessoas que paravam para entender o que estava acontecendo e os fritadores de pastel iniciavam o tratamento com bolsa de gelo na articulação do cotovelo, decidi sair de casa para a Virada Cultural. Até já havia percorrido o circuito entre o Arouche e a praça da República e culposamente ouvido o Derico, do sexteto do Jô, emendar um pot-pourri do Tim Maia com Every Breath You Take, mas não sei se conta. A real é que imaginava que nenhuma atração musical – que eu não pudesse encontrar na programação do SESC nos meses seguintes – mudaria meus planos de cochilar nos primeiros quinze minutos de um Palmeiras x Flamengo. Até que tropecei num totem da prefeitura e li que Elomar era o último convidado do palco da praça da Sé.
Havia visto Elomar ao vivo há 10 anos. Ele até voltou para São Paulo, mas houve desencontros e eu estava bem resolvido de que aquela noite no Auditório Ibirapuera seria a minha única vez diante do menestrel baiano, que nos últimos anos se associou com muito do que mais desprezo na política atual, mas que foi determinante na minha sensibilização artística e intelectual. Nada como topar o dedão para mudar de ideia.
Nos primeiros anos do século, quando a banda larga ainda não era difundida, podíamos levar meia hora para subir uma imagem no fotolog e era preciso mais de um dia conectado à internet para conseguir baixar uma música no Kazaa, com o risco de o arquivo vir corrompido ou ser uma versão em midi da faixa. No interior, para acessar no atacado músicas além das que tocavam nas rádios locais ou na MTV, quando pegava, eu dependia de que sobrasse um troco para gastar nas lojas de CD ou de alguém que viesse de São Paulo com novos álbuns para serem copiados. A ex-mulher de um tio entendia a angústia e foi uma das principais fornecedoras da minha adolescência. Mal eles estacionavam o carro e já estava eu, meio corpo enfiado pela janela, querendo descobrir qual disco seria ejetado. Naquela noite, contudo, ela achou que frustraria meus planos: puts, o CD que eu trouxe é pro seu pai, acho que você não vai curtir, disse a Paula antes de me entregar uma caixinha com o álbum que se tornaria o meu favorito da vida. Falo de Cantoria 2, a gravação de um mítico show de 84 com Xangai, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Elomar.
Depois desse CD, encontrei nas coisas do meu pai uma fita K7 pirata com o álbum anterior e outra que tinha Vital Farias em um lado e Taiguara no outro. Só mergulharia de vez nas águas perdidas de Elomar no meu primeiro ano de volta à Capital, quando comprei numa banquinha na praça Roosevelt um pendrive que prometia a discografia do Zé Ramalho e de artistas correlatos. A partir daí, não há pessoa que tenha sido próxima o suficiente de mim nos últimos 20 anos que não me tenha ouvido falar de Cantoria, visto os LPs em destaque na minha sala, ouvido uma playlist sem que eu tenha conseguido incluir alguma joia desses cantadores.
Elomar, de longe, é o mais genial. Além de compor óperas, antífonas e uma sinfonia, ele escreveu letras de canção em dialeto sertanezo, pautado na oralidade do povo da caatinga, um exercício que, na literatura, pouquíssimos nomes, como Guimarães Rosa e Ruth Guimarães, deram conta de realizar com a mesma maestria. Idiossincrático, se sente mais à vontade entre os bodes que cria, tem resistência a registros fotográficos e conta o passar do tempo em fases – ou quadras – da lua.
E foi sob os desígnios da lua minguante de São Paulo que Elomar entrou no palco de bengala. O peso dos quase 90 anos era evidente, ainda que ele tentasse culpar a dengue da qual convalescia pela impossibilidade de manejar o violão. Sorte a nossa que seu filho, o maestro João Omar, o acompanha há tanto tempo que faz parecer hereditária a competência com que são tocadas as incelenças, puxulias e tiranas do pai. A certa altura, relembrou ao público o enigma da Esfinge a Édipo e não pareceu conformado com a chegada do entardecer na sua jornada.
Eu já tinha ouvido centenas de vezes aquele repertório e vê-lo executado ao vivo na praça que é minha quadra perdida há 20 anos foi um evento que os jovens, hoje em dia, chamariam de canônico. Ao meu lado, um sujeito de barba cinza por fazer, jaqueta de nylon com reflexivo desgastado, segurando o capacete entre as pernas, enxugava as lágrimas e brindava comigo no fim de cada música. Quase o abracei para entoarmos juntos o quase refrão de O Violeiro, que vaticina que pro cantadô e violeiro/ só há treis coisa nesse mundo vão/ amor, furria, viola, nunca dinheiro/ viola, furria, amô, dinheiro não, mas seria ridículo. Ainda bem que ele se antecipou e me sussurrou que pros motoca é isso também: sonzera, liberdade e a nega me esperando em casa depois do corre.
Foi aí que, no coração da cidade que me define e me derruba, eu percebi que furria não era folia ou festa, como eu imaginava desde que conheci a canção, mas uma corruptela de alforria. Eu podia ter sabido isso desde o início, mas aprender o significado dessa palavra na praça da Sé, um pouco bêbado, na provável última vez que estaria diante do compositor, é uma experiência de outra ordem, que me lembra de que é na rua que as coisas são entendidas em sua essência.
Elomar e Dona Canô deram olé!
#palindromo
Cantoria é uma das melhores coisas produzidas neste país. Que demais esse texto.