Querida amiga, prometi que te avisaria quando chegasse em casa, mas a mensagem que escrevia ficou tão grande que percebi que fazia mais sentido transformá-la nesta carta do que mantê-la como uma mensagem de boa noite. Ok, poderia ter mandado algo como “estou bem, o voo teve que desviar para Viracopos para abastecer, aterrissei há 5 minutos em Guarulhos, as pessoas ainda não aprenderam a desembarcar do avião, durma bem”, mas a verdade é que não sei fingir frieza e que você tem coisas muito mais interessantes com que se distrair do que com o melodrama de quem sempre teve dificuldade com despedidas.
Faz 15 anos que nos conhecemos e estivemos juntos outras seis vezes, se não perdi a conta. O Paulo Guedes devia odiar a época da Pluna. Era uma festa danada e com a merreca que eu ganhava no estágio conseguia comprar uma passagem internacional. Na primeira vez, eu era um moleque, um pós-adolescente, e fiquei num hotel do Microcento, lotado de pilotos do rali Dakar. Foi nele que entendi quer ler na banheira seria um dos maiores prazeres da vida enquanto tentava decifrar o primeiro conto de Ficciones. Escrevi exatamente isso num e-mail assim que tive oportunidade de usar o computador em um locutório.
O exemplar de Borges eu comprei na Alberto Casares, minha livraria favorita do mundo, e que foi você que me apresentou. É um desses centros do universo em que o tempo é relativo e um assunto de 10 anos atrás continua a ser tratado de onde parou. Você fez questão de contar que foi lá que Borges fez a última aparição pública antes de voltar à Europa e guardo entre o tampo e o vidro da minha escrivaninha o registro fotográfico dessa noite. Lá há alephs, zahires e hrönires disfarçados de primeiras edições, livros que eu tenho certeza que fui eu que escondi atrás de um busto ou quadro e que o Sr. Alberto percebeu e deixou lá, permitindo que eu os retomasse para folheá-los e quem sabe tivesse, desta vez, coragem de comprar. Você ficou triste quando soube que a idade avançada e as condições de saúde do livreiro praticamente o aposentaram, mas ele fez tanto por nós que só temos que agradecer.

Falando em aposentadoria, achei incrível a história de que há mais de trinta anos os aposentados e pensionistas protestam nas ruas que levam ao congresso todas as quartas-feiras. Primeiro achei que tivesse entendido errado “ah, esta quarta-feira?". "Não, todas as quartas-feiras", você corrigiu. Eu sei, sempre foi mais difícil depender dos auxílios oficiais aí do que aqui, mas o que o patife do Milei anda fazendo tem deixado os abuelos na insegurança alimentar absoluta. Pude ver, você sabe, bem de perto a marcha da quarta-feira passada, aquela que foi violentamente repreendida pela polícia. A manifestação foi engrossada por jovens, boa parte vestida com camisas de time, mas longe de pertencerem todos às barrabravas, narrativa que a direita tenta fazer prosperar para justificar a violência. Vimos famílias, mães, pibes, todos sob a mira da milícia do presidente, que deixou à beira da morte Pablo Nahuel Grillo, um fotógrafo que cobria a repressão.
Algumas horas depois, ainda era possível ver, do farol do Palácio Barolo, torres de fumaça pelo centro e helicópteros com holofotes acesos como em jogos de videogame. Aliás, que megalomania tipicamente porteña essa de construir o maior prédio da cidade com a esperança de um dia abrigar os restos mortais de Dante e andares com referências aos cantos da Divina Comédia. Bastante adequado para o inferno que ocorria lá embaixo, as ruas parecendo uma zona de guerra. Você ficou impressionada, se sentiu insegura e não conseguiu dormir essa noite.
Não que você durma cedo e por muitas horas. Algo que tem me aborrecido em São Paulo é o fato de quase tudo fechar muito cedo. Já imaginava que escreveria um texto que tocasse no assunto, mas ter experimentado o seu ritmo por alguns dias me fez entender o quão careta e uniforme está a minha cidade natal. Se o ex-Riviera é a principal opção 24/7, acho que temos errado em algo muito importante. Pelo menos por aí temos o Lo de Charly pra quando der uma fome que só um asado de tira pode saciar, seja às sete da manhã, às três da madrugada ou às cinco da tarde.
Vou sentir saudade da parrilla, do vermú, do culto à milanesa perfeita como uma religião, do surpreendente Gran Dabbang, que se tornou um dos restaurantes da minha vida. E vou sentir falta sobretudo das livrarias e dos seus encontros. Aqui a culpa é de um amigo que temos em comum, o Ricardo Lombardi. Com seu dedo de livreiro, me ajudou a encontrar a La Lengua Absuelta, escondida numa galeria em Belgrano, e me apresentou ao Fede, que passou horas me ajudando a preencher lacunas; e indicou a Notanpuan, perto da estação de trem de San Isidro, onde encontrei uma edição artesanal de um Juan Cárdenas, meio perdida, antes de comer um pancho no Coquitos, uma lanchonete de 1955, e visitar a Villa Ocampo.
Também vou sentir falta de tropeçar nos inúmeros talleres de lectura, sempre lotados. Que surpresa encontrar uma aula sobre conto argentino com mais de 200 alunos, muitos grisalhos, todos com os olhos brilhando quando o professor falava de Andrés Rivera, Griselda Gambaro, Juan José Saer e Gloria Alcorta. “Só espero que a gente não leia a Mariana Enríquez, que dela eu tenho medo”, torceu Mabel, uma senhora de 62 anos que se espremeu do meu lado na salona da Biblioteca Nacional já sem cadeiras disponíveis.
Até porque foi a literatura, sempre ela, que me levou de volta a você. A decisão de comprar as passagens só foi tomada por conta da exposição do Cortázar - que, entre nós, o Cassiano faria melhor - e que sorte a nossa de a Vana ter se empolgado com a ideia de viajar para ir ao museu, aceitado pegar um uber para o meio do nada só para ver bairro em que o Julinho passou a infância e participado do ritual de cruzar a galeria Güemes como naquele conto de Todos os fogos.
Eu já prometi que demoraria para te ver, que voltaria todos os anos e, naquele e-mail em que falei da banheira, escrevi para o Zé a exata frase “eu quero me mudar pra cá". Com idas e vindas, há 15 anos uma angústia me acompanha quando chego e sempre que preciso partir. E desta vez ela bateu mais forte. É uma angústia que torna tão difícil me despedir de você e que lapida dentro de mim a certeza de que não terei vivido de verdade se eu não passar em você, Buenos Aires, parte da minha vida - ainda que seja breve, como um conto perfeito.
delícia receber essa carta e viajar pelas suas histórias.
afe que carta mais linda!