Qual a semelhança entre o folião paulistano e a playlist que o meu vizinho de porta, na praça da República, ouviu todos os dias durante a pandemia? Começa com Chico Buarque (‘Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar’) e termina com Los Hermanos (‘Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz’). A variação comum é a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, que perde toda a alegoria e esbanja o alcance textual óbvio, adequado aos tempos literais de hoje. Entre eles, um Novos Baianos, uma seta e quatro letras de amor. E, amigo leitor, isso não é troça alheia, não. Meu coração é igual.
Costumo dizer que minha relação saudável com o carnaval foi tardia e que hoje ela parece estar acomodada num lugar mais ou menos estável. Todas as vezes em que fui ao encontro do carnaval não o alcancei como idealizava e precisei que ele viesse até mim para que eu, enfim, o entendesse. Não faço grandes deslocamentos, não atravesso a cidade atrás da folia. Bloco bom é o que passa na minha porta, consigo ver da janela, ouvir da minha sala. Aí eu desço, olho, molho o pé e entendo se é pra mim.
Acho que com a cidade de São Paulo também foi um pouco assim. Após décadas de bailes em clubes fechados – deixando de lado o que acontece nos barracões e no sambódromo, que é outro fenômeno –, a expansão do folguedo para a rua criou um festejo próprio, com alguma identidade e que, embora longe da tradição dos carnavais de Salvador, Rio de Janeiro e Pernambuco, oferece ao paulistano uma relação mais ou menos orgânica com a cidade e a possibilidade de transgredir, contestar, reivindicar e inventar, verbos tão próprios à folia de Momo, em que festa e luta convergem.

Na minha adolescência, o carnaval era um tempo de desencontro. Fosse por não ter idade – ou autorização – para a farra noturna gratuita, fosse por não ter dinheiro para os bailes no clube de campo do qual meus amigos eram sócios. Não tínhamos stories ou outras formas de acompanhar o que acontecia em tempo real, mas os dias seguintes eram especialmente melancólicos. Eu passava as madrugadas azedo, organizando pastas ou playlists com as minhas músicas baixadas e encarando o MSN ou o ICQ sem ninguém online. Acordava de ressaca sem ter bebido, imaginava que a menina que eu gostava tinha se apaixonado por um pierrô qualquer, tinha certeza de que meus amigos haviam se divertido horrores e teriam ainda mais histórias que não eram compartilhadas comigo, e esperava os álbuns do Orkut e os fotologs serem pouco a pouco atualizados com fotografias da noite.
Em uma análise a posteriori, entendo que era mais sobre não estar junto, sobre perder uma oportunidade de estreitar laços, fincar raízes, do que efetivamente lamentar por não ter aproveitado uma festa que se parecia muito com tantas outras a que fui e de que não gostei. Um pouco de fomo, claro, agravada pela minha ansiedade crônica. Mas tem uma outra camada que se relaciona com um sentimento perene de não pertencimento. As mudanças de cidade pelas quais passei em momentos-chave da minha infância e adolescência me levavam a círculos de amizade que já estavam formados quando cheguei e que seguiriam se complexificando quando inevitavelmente eu fosse embora. E eu?
Eu tive que me virar. Lidar com o fato de sempre ser o garoto novo, o cara de fora, mesmo depois que eu voltasse para São Paulo e fosse morar a menos de um quilômetro e meio do primeiro endereço que tive. E fez parte dessa tentativa de entendimento de quem eu era construir algumas verdades e defesas. Não gostar do carnaval foi uma delas. Afinal, é melhor perder uma festa porque você não gosta do que porque você não foi convidado.

Tive outras fases. Por um tempo endureci e criei aversão a qualquer brecha de felicidade possível entre a noite de sexta e a Quarta-Feira de Cinzas. Depois, busquei esse carnaval ideal que – é claro! – nunca encontraria, já que estava escondido em um cofre cuja senha eu não lembro mais, no fundo falso de um armário embutido de uma casa em que meus pais já não moram há décadas, em uma cidade que não aparece nos mapas rodoviários.
Depois decidi que aproveitaria o feriado, as avenidas sem trânsito, os restaurantes sem fila. Na maior parte dos anos, eram os livros, sempre eles, que faziam companhia. (Vinhas da Ira e Luz em Agosto, por exemplo, foram leituras de carnaval.) Entretanto, isso tudo não passava de um engodo. A naturalidade com que eu fingia não me importar era a mesma que lançamos mão quando tentamos disfarçar o desconcerto de rever um grande amor. Um desvio de olhar, uma mão que não sabe se coça a cabeça ou se esconde no bolso, a dúvida entre um aceno e um beijo no rosto.
Quase 20 anos depois de ter voltado para São Paulo, com o erre retroflexo ativado apenas nas, cada vez mais espaçadas, idas ao interior, acho que estou mais ou menos onde queria estar. E hoje tem menos a ver com pertencer a um lugar e mais com entender que todas as pessoas em volta também estão um tanto perdidas. E esse é o pulo do gato. Pra mim – e especulo que para essas pessoas também – o carnaval dos blocos permite um redescobrimento vital da rua, território que é por excelência o do movimento, dos encontros insólitos, das manifestações políticas e da celebração da cidade. Um carnaval que, depois de tanto tempo, me dá licença para participar.
Que texto maravilhoso, mano
Bom dia
Para o "play-list" do ano que vem:
Geni e o Zeppelin