A literatura dando rasteiras
Minha semana assombrada pela Trilogia dos Gêmeos, de Ágota Kristóf
Muitas vezes discutindo aspectos da minha relação com a literatura acabo revelando um segredo que me envergonha um pouco: o envolvimento profissional com os livros pode levar a certa dessensibilização com a leitura. Preocupado em revirar textos atrás de recursos narrativos como um curioso que desmonta um relógio para entender seu mecanismo, às vezes me afasto daquilo que tem o potencial de envolver, surpreender, encantar. Trabalhe com o que você ama e nunca mais amará nada, diz a versão aperfeiçoada do ditado. Mas há encontros tão pujantes que botam tudo de cabeça para baixo e, de repente, me vejo desolado no sofá, não sabendo se choro ou gargalho de nervoso, desejando apenas que um dia eu seja capaz de causar em um leitor um décimo do impacto que Ágota Kristóf causou em mim nesta semana.
Chega um momento na vida de todo apaixonado por literatura que falar em fila de leitura não faz mais sentido. Ter uma biblioteca é muito mais complexo do que guardar livros lidos e por ler e, embora eu disponha de uma prateleira onde aloco as próximas leituras em potencial com uma lógica que faz muito sentido na minha cabeça e à qual recorro ordinariamente, estou sempre permeável a bons pitacos. Desde o começo do ano, a comunidade leitora tem acesso às recomendações semanais da pessoa que mais acertou me indicando livros nos últimos anos. E, desde o segundo texto d’A Lábia, estava na busca da Trilogia dos Gêmeos, que encontrei na livraria Simples, na segunda-feira, meu último dia de férias, saindo do dentista.
Cito a Ana Lima:
Nos três livros (O grande caderno, A prova e A terceira mentira) ela bota em palavras o abismo que é uma guerra na vida das pessoas, no íntimo da casa, nas cozinhas, nas camas. A história, apesar de escrita nessa língua de quem está aprendendo outra língua, sem malabarismos, mas com uma concisão encantatória, é a princípio linear: dois irmãos gêmeos são deixados pela mãe na casa da Avó, numa cidade pequena, enquanto durar a guerra. Tudo é provisório e escasso, tudo tem sujeira e desconforto, e os meninos, que são de um pragmatismo e de uma inteligência brilhantes, começam a cultivar (e essa é a palavra): a relação com a avó, a comida que eles não têm, os pequenos animais, o convívio com as pessoas da cidade.
A singela premissa, no entanto, esconde mais segredos que o jardim da Avó. No cenário em que tudo falta, os irmãos encontram um no outro a fonte primária de sobrevivência, que culmina na escolha estética da autora de narrar o volume inaugural na primeira pessoa do plural. Não precisa ser nenhum relojoeiro para perceber o onipresente nós que aglutina Lucas e Claus caçando, pescando, recolhendo lenha, buscando água, cometendo pequenos furtos, se defendendo de agressores e praticando os exercícios de subsistência para que resistam à guerra – e à vida que a sucede – e que culminarão no treinamento derradeiro, que levará à separação dos irmãos no final do primeiro romance.
O segundo traz o ponto de vista do gêmeo que fica e, no terceiro, finalmente conhecemos a vida daquele que partiu. Ou é o contrário? Não importa. A criação ficcional no final do segundo livro já adquiriu tantas camadas, já te enredou tanto, que verdade e mentira se tornam conceitos tão relativos como a identidade dos meninos. Algumas páginas após chorar a perda de um personagem, estou gargalhando pela astúcia da autora, imaginando que ela própria deve ter se divertido horrores enganando todo mundo.
Não é fácil, mas, tal como os protagonistas, Kristóf é uma sobrevivente de guerra, que deixa o país de origem, precisa aprender outra língua e desenvolve a capacidade de mentir como uma das maiores virtudes – neste caso a serviço de literatura de altíssimo nível.
Poucas vezes, superada a juventude, acreditei tanto num universo inventado. A pequena cidade com sua praça principal, a livraria, o cemitério, a biblioteca, o castelo, as ruas estreitas e feiras povoadas por soldados inimigos ou aliados – quer algo mais mentiroso que a própria guerra? – e pela população local, cada vez menos numerosa. Como não se importar com a Avó, o pároco, os guardas da fronteira, a vizinha com o lábio leporino, os meninos cruéis, o enteado aleijado. E quando a própria ideia de que eles existiram na primeira camada narrativa é posta em xeque, ficamos confusos. Mas por quê? Afinal, desde sempre, eles não passaram de uma criação ficcional. E essa experiência deliciosa é, de algum modo, o retorno à era da ingenuidade, quando o que mais importava na literatura era saborear delícias alheias e suportar as dores dos outros, e não a aventura profissional.
Relembrando outros episódios
Apesar de ter adotado um tom pessimista, a verdade é que, mesmo em graus menores, a leitura segue me encantando, mesmo depois da profissionalização do ofício. Mas, ficando nos níveis elevados – podemos adotar como critério livros que me levaram às lágrimas e que me atordoaram a ponto de me fazer repensar a vida toda afundado no sofá –, o curioso é que me sinto mais afetado por narrativas que envolvem a infância, tanto que os primeiros casos que me vêm à cabeça são o rosiano Campo Geral (a história de Miguilim) e Os meninos da rua Paulo, do também húngaro Ferenc Molnár. Em ambos os livros, os autores constroem mundos – Rosa pela linguagem, Molnár pelo apelo à ternura universal – e personagens com os quais o leitor se importa tanto que sofremos a perda de meninos como se fossem nossos amigos da escola, da rua, do sítio.
E agora, focando os olhos na Hungria, curioso que não só na Trilogia dos Gêmeos e em Rua Paulo que o crescer – sobretudo o adolescer – num contexto de violência e camaradagem parece ser o principal motor da história. Existe um terceiro livro, publicado recentemente no Brasil pela Todavia, em que esse aspecto é abordado com maestria: A bíblia, de Péter Nádas. Sinto muito que ele tenha passado batido – alô, Ana, sugestão de pauta para sua seção –, ao menos em relação a outros lançamentos próximos, como os primeiros volumes do Edouard Louis.

Passando a régua
Excetuando os momentos em que estou em investigações ou pesquisas específicas, prefiro alternar autores dos livros que lerei, mas foi impossível seguir essa lógica com os romances da Trilogia. Seria um erro e uma bobagem deixar o segundo volume para um futuro esfumaçado. É assim, portanto, que recomendo que a viagem seja feita. Acredito mesmo que o engajamento decorrente do encadeamento das leituras levará não só a uma fruição mais efetiva como a um maior entendimento desse universo brilhantemente criado.
Sonhei com os gêmeos, me peguei pensando neles no meio do dia, senti tristezas estranhas, mudei de humor algumas vezes durante a semana. E foi uma delícia perceber que não perdi a capacidade de me deixar ser envolvido e permitir que a literatura faça seu papel primordial. Se a lição de Kristóf é nos aproximar do mundo em colapso pelos olhos espertos das crianças, jamais devemos nos esquecer de como eram os encontros com os livros na nossa infância.
a gente dá a mão, o sujeito constrói um polvo de mil braços. que sorte a desse livro que encontrou você
Lucas, você leu A Analfabeta, também de Ágota K.? Li depois da Trilogia, e achei interessante encontrar ali alguns dos "exercícios" de sobrevivência dos gêmeos. E dessa Trilogia impressionante, (como você) fiquei um tempo com essa história em mim, especialmente com o 1º livro, os meninos ainda pequenos, juntos, misturados, esvaziados, anestesiados. nossa.